Ouça este conteúdo
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pretende ainda neste ano abrir a discussão sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública. O texto, articulado pelo Ministério da Justiça, deve ser protocolado após um encontro com governadores de todos os estados e do Distrito Federal.
A expectativa é que a reunião de Lula e os governadores aconteça ainda em outubro. A partir daí, a tramitação da proposta deve ser iniciada pelo Senado Federal, onde o governo acredita ter um cenário mais favorável.
Por se tratar de PEC, a proposta precisa ser aprovada por quórum qualificado em dois turnos de votações no Senado e na Câmara. Ou seja, no mínimo 49 votos dos senadores e 308 dos deputados.
"Precisamos ter uma coordenação nacional, é isso que estamos propondo, uma espécie de SUS da segurança pública. Isso vai ser feito e aprovado. Se Deus quiser, a gente manda a PEC ainda este ano para o Congresso para ver se a gente começa o ano que vem com uma política de segurança mais competente", afirmou o presidente Lula na manhã desta quinta-feira (17), em entrevista à Rádio Metrópole, da Bahia.
A avaliação de integrantes do governo é de que existe espaço para que a proposta avance ainda neste ano no Senado e fique para 2025 na Câmara, após a eleição para as presidências das duas Casas do Legislativo. O texto da PEC da Segurança ainda não foi divulgado, mas a expectativa do Executivo é coordenar o chamado Sistema Único de Segurança Pública (Susp).
Pela Constituição, é competência dos governos estaduais a gestão da segurança pública. Por isso, o governo federal já prevê resistência por parte dos governadores, que perderiam parte da autonomia nessa área.
Com a proposta, o Executivo busca, por exemplo, incluir na legislação a ampliação da competência da Polícia Federal para atuar contra milícias e facções criminosas. O governo defende que a mudança permitirá que a corporação possa atuar também em crimes de repercussão internacional.
O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, também quer ampliar a atuação da Polícia Rodoviária Federal (PRF), dando poder ostensivo e expandindo a fiscalização para hidrovias e ferrovias.
"O que nós estamos conscientes, e o presidente está de acordo, é que a União precisa atuar de forma mais presente [na segurança pública], mas hoje não tem instrumentos para isso, pois o papel da União nesse aspecto não se encontra na Constituição”, apontou o ministro.
Analistas e parlamentares ouvidos pela Gazeta do Povo anteriormente já fizeram um alerta sobre riscos da centralização do sistema sob o governo federal. Para eles, a PEC da Segurança engessaria o sistema, impedindo que as peculiaridades e necessidades de cada local fossem levadas em conta em um planejamento de segurança.
O jurista Fabrício Rebelo teme que a proposta concentre demasiadamente a responsabilidade do uso legal da violência em um poder central. O perigo, segundo ele, estaria no uso político dessa estrutura policial fortificada, como ocorre em ditaduras como Venezuela e Cuba.
Governadores e Congresso resistem à PEC da Segurança de Lula
A proposta vem sendo gestada pelo governo federal desde fevereiro, quando Lewandowski assumiu o Ministério da Justiça após a saída de Flávio Dino. Publicamente, o chefe da pasta nega que o Executivo tenha intenção de interferir nas competências dos estados e que o projeto será discutido com todos os setores interessados.
Mas integrantes da bancada da segurança no Congresso e governadores apontam que tudo está sendo discutido de forma isolada pelo Planalto até o momento. Reservadamente, parlamentares alegam que o atual secretário nacional de Segurança Pública, Mário Luiz Sarrubbo, não mantém diálogo com representantes das polícias estaduais e que sua chegada ao Ministério da Justiça dificultou a participação dos congressistas nas pautas discutidas pela pasta.
O governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), afirmou recentemente que o plano do governo Lula para a segurança pública está "desconectado da realidade".
"O governo federal tem a iniciativa de coibir crimes que são da alçada do governo federal. Lavagem de dinheiro, narcotráfico, comércio de arma, tudo isso. E para você preparar isso tudo, ao invés de você querer interferir numa política de Brasília para dizer o que cada estado tem que fazer, você devia se preocupar em fazer acordos internacionais com os países que são limítrofes conosco para poder fazer o combate capaz de poder ter consequência real ao narcotráfico e ao crime", defendeu.
Para Caiado, a proposta visa uma clara interferência no modelo de segurança que cada estado tem autonomia para adotar. "A ação federal, não é dizer a você: olha, amanhã eu quero que você coloque o policial com a câmera. Isso é de cada governador, isso não é prerrogativa federal. Agora tem que ter a câmera e a balança. Mais de 40g [de maconha] está preso. Menos de 40g está autorizado. O que vai levar o Brasil uma situação dessa? Isso é prerrogativa do estado", completou.
Na mesma linha, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), afirmou que nenhum estado vai aceitar perder autonomia. "Obviamente que nenhum governador vai topar a perda de autonomia, e o ministro garantiu que isso também vai ser preservado, que eles também têm essa preocupação. O que a gente precisa é de respeito absoluto à autonomia dos entes Federados", afirmou Tarcísio.
Governo Lula visa impor suas políticas de segurança por meio do SUSP
Além de aumentar a prerrogativa da PF e da PRF no combate às milícias, máfia do jogo do bicho e facções criminosas, a proposta do governo visa incluir na Constituição o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) nos mesmos moldes do SUS (Sistema Único de Saúde).
Ao incluir o SUSP na Constituição, o governo federal passaria a obrigar os estados a fazerem essas adequações e padronizações sobre segurança pública de acordo com os seus interesses. Hoje, isso é feito por meio de incentivos e repasses do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), que giram em torno de R$ 2,7 bilhões e que também ganharia previsão constitucional.
A ideia do governo é repetir o modelo do Sistema Único de Saúde (SUS), no qual há um conselho tripartite com representantes da União, estados e municípios decidindo sobre normas e procedimentos que serão aplicados em todo o país, o que não ocorre hoje na segurança pública. A lei do SUSP foi sancionada em 2018 e já prevê o compartilhamento de dados, além de operações e colaborações nas estruturas federal, estadual e municipal. Mas segundo entidades ligadas às polícias civis e militares, a legislação até hoje não foi aplicada pelo Executivo federal.
Presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adebol-BR), o delegado Rodolfo Laterza, afirma que a busca por uma PEC por parte do governo busca apenas "marcar uma posição de viés político".
"Uma Proposta de Emenda à Constituição tem uma tramitação altamente complexa e que acaba gerando conflitos e divisões classistas. Não vejo como a melhor forma de você estabelecer uma melhoria da governança da segurança pública. O que salta os olhos é que o Ministério da Justiça ignora que nós temos uma lei que foi um grande sacrifício de obtenção de consenso que foi a lei do SUSP", explica Laterza.
Segundo o delegado, a estratégia do governo em apresentar uma PEC sobre o tema ignora toda a discussão que foi feita para criação do SUSP. O representante da Adebol questiona ainda o discurso do Executivo de que a proposta poderia integrar o sistema de segurança.
"Se a lei do SUSP for aplicada corretamente, de forma bem centrada por todos os estados e pela União no papel dela, nem teria esse tipo de discussão. Mas o governo quer se furtar justamente da aplicação de uma lei federal em detrimento de buscar justamente uma marca por meio de uma posição política através de uma PEC", afirma Laterza.
"Ou seja, fala-se como se nunca ninguém tivesse pensado em integração, quando isso já é algo institucionalizado. Falta o Ministério da Justiça operacionalizar o que a lei já prevê", completa.
Na mesma linha, o presidente da Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais (Feneme), Coronel Marlon Teza, afirma que, até o momento, o Ministério da Justiça não buscou representantes do setor para discutir o teor da PEC. A Feneme e a Adebol têm direito a uma cadeira no Conselho de Segurança Pública e Defesa Social como entidades representativas das polícias militares e civis de todo o país.
"Eu pessoalmente fui ao Secretário Nacional de Segurança Pública em audiência formal dizer para ele que nós gostaríamos de saber o que que estaria sendo planejado, inclusive dizendo que estávamos à disposição para qualquer discussão. Mas não tivemos nenhum chamamento", afirma Teza, que acredita que o tema está sendo debatido entre "quatro paredes" pelo governo federal.
Questionado sobre a possibilidade de o tema chegar ao Congresso ainda neste ano, o Coronel acredita que no Legislativo haverá mais espaço para discussão. "[Aprovar] uma emenda constitucional não é uma coisa tão simples assim, ainda mais nesse clima e com uma proposta criada em segredo. Hoje eu não vejo nenhuma perspectiva de isso avançar no Congresso Nacional, até porque a gente atua muito forte lá e nós queremos e vamos participar do debate, já que não participamos da construção do texto", completou o presidente da Feneme.