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O que Bolsonaro deixa de explicar ao desistir de depor sobre a suposta interefência na PF
O presidente Jair Bolsonaro numa reunião ministerial: questões em aberto que deixarão de ser esclarecidas.| Foto: Anderson Riedel/Presidência da República

O presidente Jair Bolsonaro desistiu de prestar depoimento sobre a suposta interferência política dele na Polícia Federal (PF), conforme acusou o ex-ministro da Justiça Sergio Moro ao sair do governo, em abril. A decisão de Bolsonaro foi comunicada na quinta-feira (26) ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela Advocacia-Geral da União (AGU). A AGU também pede ao STF que determine a conclusão do inquérito sem o depoimento do presidente. Com isso, Bolsonaro deixará de dar respostas oficiais às questões que envolvem o caso.

A desistência encerra um impasse que se arrastava desde setembro. O Planalto queria que o depoimento fosse por escrito. Mas o então relator do caso no STF, o ex-ministro Celso de Mello, determinou o depoimento presencial de Bolsonaro à Polícia Federal, que conduz as investigações a mando do Supremo.

O governo então recorreu. Como Celso Mello tirou licença médica, o recurso ficou nas mãos do ministro Marco Aurélio Mello – que suspendeu em setembro o depoimento presencial até que o plenário do STF decidisse sobre o assunto. Mas isso não ocorreu até agora. Sem poder depor por escrito, Bolsonaro desistiu de prestar os esclarecimentos presencialmente.

O depoimento do presidente era a etapa final da investigação. A PF, daqui em diante, terá de finalizar as investigações e enviar um relatório com suas conclusões para o procurador-geral da República, Augusto Aras, que decidirá se arquiva a denúncia ou dá prosseguimento a ela. Em último caso, esse processo pode levar à cassação de Bolsonaro – embora, nos bastidores, o rumor é de que a tendência é pelo arquivamento por falta de provas.

Embora Bolsonaro negue a interferência na PF, há questões que não foram completamente esclarecidas pelo presidente: contradições entre os argumentos de sua defesa com provas colhidas no decorrer das investigações. A Gazeta do Povo elencou oito perguntas sobre o caso da suposta interferência de Bolsonaro na PF que agora ficarão sem respostas:

1. Por que Bolsonaro disse que iria mudar o comando da PF do Rio por problemas de produtividade se os dados mostram que a unidade estava em sua melhor performance?

A discussão sobre a tentativa de interferência do presidente na PF começou em agosto de 2019, quando Bolsonaro anunciou a troca no comando da Superintendência da PF no Rio de Janeiro, alegando problemas de produtividade na Polícia Federal fluminense.

“Todos os ministérios são passíveis de mudança. Vou mudar, por exemplo, o superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro. Motivos? Gestão e produtividade”, afirmou à época.

Os dados mostram, porém, que a Superintendência no Rio havia melhorado o índice produtivo em 2019 e atingiu sua melhor performance em julho do ano passado, um mês antes de Bolsonaro anunciar a troca.

2. Qual a justificativa de Bolsonaro para ter trocado mensagens com Moro dizendo que só queria "uma [superintendência da PF], a do Rio de Janeiro"?

Após Bolsonaro afirmar que mudaria o comando da PF do Rio, efetivamente houve mudanças. Ricardo Saadi deixou o cargo de superintendente da Polícia Federal fluminense logo depois da declaração do presidente, no ano passado.

Inicialmente, Bolsonaro tentou emplacar o nome de Alexandre Silva Saraiva, superintendente da PF no Amazonas, para o comando no Rio. Após uma reação negativa da PF, o escolhido acabou sendo Carlos Henrique Oliveira Sousa, ex-superintendente da PF em Pernambuco.

Em maio deste ano, o novo diretor-geral da PF, Rolando Souza, assumiu o comando da Polícia Federal. Sua primeira providência foi a mudança na Superintendência do Rio. Carlos Henrique Oliveira Sousa foi promovido para o cargo de diretor-executivo da corporação, em Brasília. E Tácio Muzzi assumiu a chefia no Rio. Rolando Souza garantiu que a mudança não foi um pedido de Bolsonaro.

Mas troca de mensagens de celular entre Moro com Bolsonaro, tornadas públicas pelo ex-ministro, mostram que o presidente tinha, sim, interesse em indicar o chefe da Superintendência fluminense. “Moro você tem 27 superintendências, eu quero apenas uma, a do Rio de Janeiro”, escreveu o presidente ao então ministro da Justiça.

3. Como Bolsonaro explica a contradição entre manifestação oficial do Gabinete se Segurança Institucional da Presidência (GSI) com o que o presidente diz ter afirmado na reunião ministerial de 22 de abril – de que não havia reclamado da PF no Rio, mas sim de sua segurança pessoal no estado?

Moro afirma que Bolsonaro queria trocar a chefia da Polícia Federal no Rio de Janeiro por motivos políticos. Para isso, ele indicou como prova no inquérito a reunião ministerial de 22 de abril. Argumentou que a reunião mostra que o presidente o ameaçou caso oferecesse resistência para as mudanças na PF.

Bolsonaro disse que o trecho da reunião citado por Moro mostra apenas que ele estava insatisfeito com sua segurança pessoal no Rio de Janeiro, e não com a Superintendência da PF no estado.

"Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar 'f...' minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vai trocar. Se não puder trocar, troca o chefe dele. Não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira”, disse Bolsonaro na reunião ministerial de abril.

Moro afirma que Bolsonaro estava se referindo à Superintendência da PF. Bolsonaro alega que estava falando de sua segurança pessoal, que é responsabilidade do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), comandado pelo ministro Augusto Heleno.

O inquérito da PF registra, entretanto, um ofício do GSI apontando que nunca houve “óbices ou embaraços" para troca na segurança. O mesmo ofício também informa que o chefe da segurança pessoal do presidente no Rio foi trocado em março, um mês antes da reunião ministerial de abril que veio à público. Ele foi, inclusive, promovido. Em seu lugar, Bolsonaro colocou o número dois da Diretoria da Segurança Presidencial.

Em fevereiro, também houve mudanças na segurança do presidente, no escritório do Rio do GSI. O chefe do escritório, o coronel Luiz Fernando Cerqueira, foi substituído pelo tenente coronel Rodrigo Garcia Otto.

Ou seja, se em abril o presidente reclamava de não conseguir trocar “gente da segurança”, se referindo ao GSI, a reclamação não faria sentido.

4. O que Bolsonaro diz sobre as informações que embasam a suspeita de que ele teria interesse pessoal e familiar em interferir na PF?

Um dos principais pontos que devem ser esclarecidos nas investigações é qual seria a suposta motivação do presidente para querer interferir na PF, principalmente na Superintendência do Rio de Janeiro.

Em maio, o presidente alegou não ter motivos para interferir porque a corporação nunca o investigou, nem a ninguém de sua família. Mas isso não é verdade. A PF do Rio investigou suspeitas de lavagem de dinheiro do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente. O caso foi arquivado sem a realização de quebras de sigilo.

No depoimento que prestou na investigação, o ministro da Casa Civil, general Braga Netto, chegou a dizer que o presidente "se queixava" do inquérito da PF sobre as declarações do porteiro de seu condomínio, no âmbito da investigação do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (Psol).

Recentemente, novos elementos viraram objeto do inquérito no STF. Em entrevista à Folha de S. Paulo, o empresário Paulo Marinho disse que o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente, foi avisado com antecedência sobre a operação da Polícia Federal que implicaria seu então assessor Fabrício Queiroz . Segundo Marinho, a PF também decidiu deflagrar a operação envolvendo Queiroz após o segundo turno das eleições de 2018 para não prejudicar a campanha de Jair Bolsonaro.

5. Como Bolsonaro explica a troca de mensagens com Moro em que afirma que uma investigação da PF contra deputados bolsonaristas era “mais um motivo para trocar” o comando da Polícia Federal?

Na semana em que Sergio Moro pediu demissão do cargo de ministro da Justiça, em abril, ele e o presidente conversaram pelo WhatsApp. Na conversa, Bolsonaro reclama de uma investigação sobre deputados bolsonaristas e outros aliados em um inquérito que apura a convocação e o financiamento de atos antidemocráticos.

O presidente afirma na conversa que este era “mais um motivo para trocar” o então diretor-geral da PF, Maurício Valeixo. Em outra mensagem, do mesmo mês de abril, o presidente afirmou que ministros que o contrariassem deveriam ter a “dignidade de se demitir”.

São alvos iniciais do inquérito solicitado pela PGR o deputado federal Daniel da Silveira (PSL-RJ), que ganhou notoriedade ao rasgar a placa da vereadora Marielle Franco, e o Cabo Junio Amaral (PSL-MG). Recentemente, dois filhos do presidente foram convocados a depor no inquérito: o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-SP) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).

Outro inquérito que envolve parlamentares ligados a Bolsonaro é o que apura a divulgação de fake news contra políticos, membros do Judiciário e instituições.

6. Que tipo de relatórios de inteligência o presidente esperava que a PF lhe entregasse, considerando que essa não é uma atribuição legal da Polícia Federal?

O presidente Bolsonaro também reclamou na reunião ministerial do dia 22 de abril que não tinha acesso a relatórios de inteligência produzidos pela PF. No pronunciamento à imprensa feito no dia da demissão do ex-ministro Sergio Moro, Bolsonaro disse que praticamente “implorava” a Moro esse tipo de informação e nunca foi atendido.

Porém, a PF não tem atribuição de enviar relatórios ao presidente da República. Essa atribuição é da Agência Brasileira de Investigação (Abin). O inquérito no STF mostra que a Abin produziu 1.272 relatórios de inteligência em 2019 e 2020. A PF enviou 65 relatórios à Abin, que também foram repassados ao presidente e a outros ministros.

Recentemente, uma série de episódios levantaram críticas de que o Planalto estaria tentando recriar uma espécie de Sistema Nacional de Informações (SNI), o serviço de inteligência da ditadura militar usado para monitorar e perseguir adversários do regime.

No depoimento à PF, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, declarou que o presidente não solicitou informações sobre inquéritos sigilosos da Polícia Federal. O próprio Bolsonaro, porém, declarou que havia tido acesso a um depoimento do policial reformado Ronnie Lessa, acusado de ser um dos executores da vereadora Marielle Franco. E disse que gostaria de ter relatórios diários provenientes da PF.

7. Bolsonaro é ou não amigo pessoal de Alexandre Ramagem, a quem chegou a nomear para comandar a PF?

Bolsonaro provavelmente também será perguntado sobre sua relação com o delegado Alexandre Ramagem, atual chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Ramagem chegou a ser nomeado delegado-geral da PF, mas a nomeação foi barrada pelo STF. 

Ramagem tem relações próximas com um dos filhos do presidente, o vereador carioca Carlos Bolsonaro. Delegado da PF desde 2005, ele desenvolveu uma relação de confiança com Bolsonaro e seus filhos ao longo da campanha de 2018, quando coordenou a segurança da campanha eleitoral do então candidato à Presidência. Nas redes sociais, Carlos Bolsonaro chegou a publicar a foto de uma festa de ano-novo, entre 2018 e 2019, em que Ramagem aparece ao seu lado.

A proximidade dele com a família Bolsonaro levantou questionamentos sobre a possibilidade de o presidente o nomear para tentar interferir na PF.

Em seu depoimento no inquérito, Ramagem,tentou se distanciar da família Bolsonaro ao dizer que “não possui intimidade pessoal com seus entes familiares”.

Bolsonaro, porém, já mencionou ao menos duas vezes sua amizade com ele. Em entrevista na porta do Palácio da Alvorada, o presidente disse que Ramagem "tomava café junto, leite condensado no pão". E questionou: "E aí? Devo escolher uma pessoa que eu nunca vi na minha vida?"

Em seu depoimento, o ministro-chefe do GSI, Augusto Heleno, disse à PF que Ramagem se reúne "corriqueiramente" com o presidente e que a "amizade" entre os dois "vem da época em que o presidente sofreu o atentado [a facada na campanha eleitoral de 2018], e Alexandre Ramagem assumiu sua segurança”.

8. Bolsonaro ofereceu a indicação de Moro ao STF em troca de mudanças na cúpula da PF?

Outro ponto a ser esclarecido pelo inquérito é se Bolsonaro efetivamente ofereceu uma vaga de ministro do STF a Moro em troca de alterações no comando da PF. Ou se Moro teria feito algum pedido nesse sentido para acatar as mudanças no comando da Polícia Federal.

Um dia antes da demissão de Moro do Ministério da Justiça, a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) enviou uma mensagem ao ex-juiz da Lava Jato sugerindo que ele conversasse com o presidente.

“Pelo amor de Deus, me deixe ajudar. Vamos amanhã marcar 07h00 com o PR [presidente da República] lá no Alvorada. A gente conversa e ele lhe garante a vaga no STF este ano”, escreveu a deputada. “Por favor, ministro, aceite o Ramagem. E vá em setembro para o STF. Eu me comprometo a ajudar. A fazer o JB [Jair Bolsonaro] prometer”, completou. “Prezada, não estou a venda”, foi a resposta de Moro.

Carla Zambelli se referia à vaga do ministro Celso de Mello, que se aposenta do STF no próximo dia 13. O substituto já foi indicado por Bolsonaro: o desembargador Kassio Nunes Marques. Mas, à época, Moro era o mais cotado para a vaga.

O presidente alega que Moro exigiu que Maurício Valeixo, diretor-geral da PF à época, só fosse substituído do comando da PF depois que ele (Moro) fosse indicado para o Supremo. “Mais de uma vez, Sergio Moro disse para mim: ‘O senhor pode trocar o Valeixo em novembro, depois de me indicar para o STF’. É desmoralizante para um presidente ouvir isso, mais ainda externar”, afirmou.

Moro negou a acusação. "Se fosse esse o meu objetivo, teria concordado ontem com a substituição do diretor-geral da PF", escreveu no Twitter.

Quem já foi ouvido no inquérito da suposta interferência de Bolsonaro na PF

No inquérito sobre a suposta interferência política de Bolsonaro na Polícia Federal, a própria PF já ouviu Moro e os ministros Augusto Heleno (GSI), Walter Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo). A deputada federal Carla Zambelli (PSL) e delegados da PF também prestaram depoimento no inquérito.

Um dos elementos do inquérito é o vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril, apontada por Moro como uma das provas da tentativa de interferência do presidente na PF. A reunião foi tornada pública em maio pelo ministro do STF Celso de Mello.

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