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O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, olha para o presidente Jair Bolsonaro
Itamaraty realinha política externa brasileira de forma a se aproximar do pensamento ideológico de Jair Bolsonaro.| Foto: Sérgio Lima

Do ponto de vista das relações internacionais, em especial das instituições que formam a Organização das Nações Unidas (ONU), a postura de cada país não depende, necessariamente, do grupo político que está no poder. A própria organização do Ministério das Relações Exteriores, que costuma valorizar a hierarquia e a antiguidade no cargo, também tende a funcionar de forma contínua, independentemente de mudanças no poder Executivo. Mas, na prática, toda vez que um novo governante assume, ele apresenta seus pontos de vista para a diplomacia do país. É o que vem acontecendo desde janeiro.

“As mudanças em temas como gênero e indicações de que algo semelhante possa ocorrer em temas de direitos humanos e meio ambiente são a transformação da política externa de modo a adequá-la à agenda ideológica do presidente”, afirma Maurício Santoro, professor-adjunto do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. “Até certo ponto é algo que acontece em todo governo, contudo o grau das transformações propostas por Bolsonaro é inédito”.

Mudança de termos

Desde o início do ano, os diplomatas vêm sendo orientados a alterar o vocabulário. Por exemplo, no lugar de “gênero”, os textos e os discursos vêm utilizando a construção “igualdade entre homens e mulheres”. Em vez de “violência com base em gênero”, por exemplo, entra “violência com base em sexo”. O Brasil vem inclusive solicitando que essa alteração seja feita nos textos de resoluções da ONU.

“Direitos sexuais e reprodutivos” é outra expressão que os brasileiros querem que seja retirada dos tratados, porque poderia abrir interpretações favoráveis ao aborto. Seguindo essa linha de raciocínio, o governo tem realizado uma releitura de documentos e acordos anteriores, em busca e cláusulas e artigos que abordem a ideologia de gênero.

Além disso, o Brasil passou a evitar, em suas manifestações, as expressões “globalismo” ou “global”. Prefere falar em soberania e, quando defende parcerias, trata de “cooperação entre nações” – o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, é adepto da teoria de que o globalismo é a forma como o marxismo cultural se manifesta na atualidade.

Logo no começo do ano, o país se retirou do Pacto Global para Migração da ONU. E tem valorizado acordos bilaterais no lugar de grandes negociações multilaterais. Também vem defendendo, com maior ênfase, as políticas contra o aborto.

Risco de isolamento

Em coletiva de imprensa realizada no Itamaraty em junho, Ernesto Araújo explicou a mudança de rumo. “O que nós estamos tentando fazer é problematizar uma série de coisas que eram dadas como certas, de que o mundo estava indo para um determinado lado, que estava indo para um lado onde você não tem mais nação, onde você não tem mais família, onde você não tem mais homem e mulher. E o Brasil hoje é contra isso”.

Segundo o professor Maurício Santoro, algumas dessas mudanças desafiam antigos consensos, com os quais o Brasil, até o ano passado, concordava. “Muitas das ideias defendidas pelo presidente são extremas e rompem com tradições de décadas da diplomacia do Brasil, causando o risco de isolamento do país em fóruns multilaterais”, ele afirma.

Para Giorgio Romano, coordenador do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB) da Universidade Federal do Grande ABC, a mudança no vocabulário provoca grande resistência interna no Itamaraty. “A questão do gênero não é tão importante do ponto de vista das negociações do Brasil, mas causa constrangimento nos bastidores da diplomacia. O ministro defende posições que agradam o presidente, mas ele é claramente malvisto por seus próprios diplomatas”.

A revisão da postura brasileira preocupa a Europa ocidental em um ponto específico: a manutenção dos acordos ambientais previamente estabelecidos, em especial o Acordo de Paris, que define metas para a redução da emissão de gases que causam o efeito estufa – o Brasil se comprometeu a cortar as emissões em 37% até 2025, na comparação com o ano de 2005. O presidente Donald Trump, considerado pelo governo brasileiro um personagem de referência em termos de postura no cenário internacional, retirou os Estados Unidos do acordo.

Ponto de discórdia

Quando o acordo entre Mercosul e União Europeia foi anunciado, a porta-voz do governo francês, Sibeth Ndiaye, se apressou em anunciar que a França não ratificaria o tratado caso o Brasil não reforçasse seu comprometimento com o tema.

Ao encontrar o ministro de Relações Exteriores da Alemanha, Heiko Maas, em abril, Ernesto Araújo ouviu da imprensa alemã uma série de perguntas sobre o grau de comprometimento do país no combate às mudanças climáticas.

Durante a campanha política, Jair Bolsonaro chegou a afirmar que o Acordo de Paris representa perder a ingerência brasileira sobre a Amazônia. Mas, ainda que o Brasil esteja se abstendo de alguns fóruns internacionais de debate sobre o tema, a posição oficial do Itamaraty é que esses compromissos serão respeitados.

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