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Dinheiro na cueca
Lavagem de dinheiro: Comissão quer mudanças que contrariam convenções internacionais| Foto: Divulgação/Polícia Federal

Retirar do rol de crimes de lavagem de dinheiro a mera ocultação de bens e valores foi a principal proposta pela comissão de juristas criada pelo pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para propor mudanças na lei de lavagem, que se reuniu na semana passada para discutir as primeiras propostas. Apesar de a reunião ser fechada, a Gazeta do Povo teve acesso aos principais temas tratados no encontro.

Se levada adiante essa sugestão, a alteração fará com que o Brasil descumpra convenções internacionais, o que pode acarretar na perda investimentos estrangeiros.

A comissão de juristas tem causado preocupações em membros do Ministério Público e em entidades de combate à corrupção por causa da disparidade em sua composição. Dos 43 integrantes, 24 são advogados. Destes, 18 defendem ou já defenderam políticos e empresários investigados e condenados por crimes de lavagem de dinheiro. A preocupação é que qualquer alteração na lei, se for mais benéfica para os investigados e condenados, retroage e pode anular condenações.

A Transparência Internacional encaminhou à OCDE, no dia 14 de outubro, dois relatórios com denúncias de retrocessos no combate à corrupção no Brasil. Em um dos documentos, a ONG alerta para a criação da comissão de juristas.

A entidade afirma que “preocupações já surgiram” em relação ao tema, como a ausência do Coaf na comissão, e sinaliza o risco de “que a reforma possa minimizar os esforços do país para combater a lavagem de dinheiro”.

A pesquisadora da Transparência Internacional, Maíra Martini, alerta que há preocupação pela ausência de membros técnicos do governo nos grupos de discussão.

Mudança na definição de lavagem de dinheiro

A lei de lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/1998), em seu artigo 1.º, estabelece que é crime, passível de 3 a 10 anos de prisão, “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.

O que foi proposto na primeira reunião de juristas é que a ocultação da localização de bens e valores deixe de ser configurada lavagem de dinheiro.

Para se ter uma ideia do impacto da mudança, a descoberta, pela Polícia Federal, do apartamento onde o ex-ministro Geddel Vieira Lima guardava R$ 51 milhões dentro de malas, não configuraria crime. O mesmo valeria para o caso do senador Chico Rodrigues (DEM-PE), flagrado pela PF com dinheiro entre as nádegas na última quarta-feira (14). Na casa do senador, a PF encontrou R$ 30 mil.

Para a pesquisadora da Transparência Internacional, a legislação atual é adequada e está equiparada a recomendações internacionais. “Nossa preocupação é que a discussão possa acabar enfraquecendo uma definição que está de acordo com as recomendações internacionais”, diz Maíra.

Segundo a pesquisadora, a ocultação da localização de bens e recursos é uma fase importante da lavagem de dinheiro. “Alguém está com o dinheiro escondido no apartamento, não faz sentido esperar ele gastar para dizer que é lavagem”, diz.

Mudança pode prejudicar avaliação do Gafi

Uma mudança para enfraquecimento da lei de lavagem também poderia fazer com que o Brasil entrasse na lista cinza do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi), órgão da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Isso mudaria o grau de risco financeiro internacional do Brasil e poderia diminuir os investimentos no país.

“Isso tem consequências bem sérias quando se fala em economia e atração de investimentos”, alerta Maíra. No início do ano que vem, o Gafi virá ao Brasil para uma avaliação sobre a legislação sobre lavagem de dinheiro no país.

Mudança descumpre convenções internacionais

A proposta de mudança na legislação, além de beneficiar políticos envolvidos em casos de corrupção, desumpriria pelo menos três convenções internacionais sobre combate à lavagem de dinheiro das quais o Brasil é signatário.

A principal convenção internacional que o Brasil estaria infringindo se deixar de considerar a ocultação de bens e valores como crime de lavagem é a convenção de Palermo, ratificada pelo Decreto Nº 5.015/2004. O artigo 6 da convenção estabelece o seguinte:

1. Cada Estado Parte adotará, em conformidade com os princípios fundamentais do seu direito interno, as medidas legislativas ou outras que sejam necessárias para caracterizar como infração penal, quando praticada intencionalmente:

a) i) [...];

ii) A ocultação ou dissimulação da verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens ou direitos a eles relativos, sabendo o seu autor que os ditos bens são produto do crime;

A Convenção de Viena, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto Nº 154/1991, também prevê a punição para quem esconde dinheiro obtido de forma ilícita. O artigo 3.º do tratado diz o seguinte:

1 - Cada uma das Partes adotará as medidas necessárias para caracterizar como delitos penais em seu direito interno, quando cometidos internacionalmente:

[...]

b) i) [...];

ii) a ocultação ou o encobrimento, da natureza, origem, localização, destino, movimentação ou propriedade verdadeira dos bens, sabendo que procedem de algum ou alguns dos delitos mencionados no inciso a) deste parágrafo ou de participação no delito ou delitos em questão. 

Por fim, a Convenção de Mérida, incorporada ao Brasil pelo Decreto Nº 5.687/2006, também trata do tema, em seu artigo 23:

1. Cada Estado Parte adotará, em conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, as medidas legislativas e de outras índoles que sejam necessárias para qualificar como delito, quando cometido intencionalmente:

a) i) [...];

ii) A ocultação ou dissimulação da verdadeira natureza, origem, situação, disposição, movimentação ou da propriedade de bens o do legítimo direito a estes, sabendo-se que tais bens são produtos de delito. 

Outras propostas de mudanças na lei de lavagem de dinheiro

Essa não foi a única alteração discutida na primeira reunião da comissão de juristas, na semana passada. Outras propostas, como a diminuição de penas e a obrigatoriedade de uma condenação pelo crime antecedente ao de lavagem de dinheiro também foram apresentadas.

Um dos advogados propôs, por exemplo, a diminuição da pena para os crimes de lavagem. Atualmente, a pena prevista em lei é de 3 a 10 anos. A pena sugerida durante a reunião foi de 3 a 6 anos.

Outra sugestão que chamou a atenção, e que também partiu de um dos advogados integrantes do grupo, tem a ver com a relação do crime antecedente ao da lavagem de dinheiro. A proposta é que a lavagem só possa ser punida quando houver uma condenação por um crime anterior, que deu origem aos valores ilícitos.

“É uma regra internacional não depender da condenação do crime antecedente para condenar por lavagem de dinheiro”, disse um procurador do Ministério Público ouvido pela Gazeta do Povo, em reservado. Para ele, a mudança dificultaria a punição.

“E se o crime antecedente foi feito no exterior? E se o crime antecedente a pessoa [que cometeu] morreu e a pena foi extinta? E se o crime antecedente for um crime mais leve e  já estiver prescrito?”, questionou.

Além disso, a regra traria dificuldades para condenar doleiros, por exemplo, já quem nem sempre é possível estabelecer quais crimes foram cometidos antes de o dinheiro chegar às mãos desses operadores.

Por fim, outra proposta levantada na primeira reunião da comissão foi estabelecer que as penas para crimes de lavagem devem ser equivalentes às penas dos crimes que deram origem ao dinheiro sujo. Isso também é visto como um problema por membros do MP.

“Por que para a lavagem de dinheiro temos uma pena mais grave? Porque a gente está defendendo um bem jurídico diverso”, explica o procurador ouvido pela Gazeta do Povo. “A lavagem de dinheiro tem um objeto jurídico mais difuso. No momento em que a pessoa pega um dinheiro do jogo do bicho, que é uma infração, e para lavar esse dinheiro ela injeta na economia, faz um hotel, um restaurante, ela consegue proporcionar uma competição completamente degradante do sistema econômico, desigual, por conta desse dinheiro que vem do ilícito”, completa.

Próximos passos da comissão

A comissão de juristas deve discutir as propostas de alteração na lei de lavagem de dinheiro e apresentar um relatório. O relator da comissão é o desembargador Ney Bello. Com o relatório pronto, a proposta passa a tramitar na Câmara e, posteriormente, no Senado.

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