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O que o passageiro pode ganhar e perder com a liberalização do mercado de linhas de ônibus interestaduais
Movimento na rodoviária de Curitiba: liberalização do mercado pode beneficiar passageiros, mas também há riscos.| Foto: Aniele Nascimento/Arquivo/Gazeta do Povo

A recente tentativa do governo de liberalizar o setor das linhas de ônibus interestaduais e internacionais gerou uma queda de braço com empresas do segmento, que se opõem à medida alegando que a mudança traz insegurança jurídica e potencial prejuízo para os passageiros. Para barrar a nova legislação, as companhias recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF).

O decreto presidencial, assinado por Jair Bolsonaro em 4 de dezembro de 2019, deixa as companhias livres para estabelecerem os valores das tarifas, os itinerários e seus respectivos horários.

Entre as novidades, a desregulamentação acaba com o limite de autorizações para cada linha, o que deve facilitar a entrada de novas empresas – sobretudo nos trechos com mais passageiros, levando a uma redução dos preços das passagens.

Fim das licitações das linhas de ônibus é maior reclamação

O ponto mais contestado pelas empresas, porém, é o que põe fim às licitações das linhas. De acordo com as novas regras, será suficiente uma simples autorização da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) para uma empresa começar a operar um novo destino ou para entrar numa rota já estabelecida.

"O transporte de passageiros, pela Constituição, é um serviço público, e quando o estado delega um serviço público para o setor privado tem que ser por meio de licitação", afirma Luiz Cláudio Varejão, secretário geral da Associação Nacional das Empresas de Transporte Rodoviário de Passageiros (Anatrip), entidade que representa 21 companhias em nove estados.

A associação entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no STF para questionar as novas normas que, em sua avaliação, podem trazer precariedade e transformar o mercado num oligopólio. "As pequenas empresas não terão como concorrer; e as grandes empresas vão selecionar os mercados e operar nos mercados atrativos", avalia Varejão.

Ao lado de interesses que podem ser vistos como corporativistas, há também o receio que as mudanças afetem negativamente o passageiros. O risco é que, num mercado totalmente desregulado, linhas pouco rentáveis possam desaparecer, deixando cidades e regiões isoladas.

"Se eu deixo de atender cidades ou regiões, alguém vai suprir a lacuna deixada. Vão aparecer piratas", explica o coordenador do FGV Transportes, Marcus Quintella.

O especialista em transportes reconhece que atualmente o setor é muito regulamentado e que uma liberalização pode trazer benefícios. "Mas a situação é complexa. O governo pode liberar tudo, mas tem que arranjar mecanismos e regras para controlar a qualidade do serviço e não deixar que o atendimento afete a população", avalia.

O que fazer com as linhas de ônibus com pouca demanda?

Algumas soluções poderiam ser oferecer incentivos para as empresas operarem linhas com pouca demanda e formas de financiamentos para modernizar a frota de ônibus. "Algum tipo de subsídio tem que ter; em qualquer lugar do mundo é assim. Em algumas situações, as empresas simplesmente não conseguem cobrar a tarifa que deveriam", explica Quintella.

A Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati), que reúne cerca de 100 companhias do setor, enxerga as mudanças com preocupação. "O efeito é uma enorme insegurança nas regras do jogo e consequentemente menos investimentos. Para os passageiros, um sentimento de mais oferta. Já o setor terá maior concorrência, o que já há hoje", diz o presidente da entidade, Eduardo Tude de Melo.

"Com relação às tarifas, no primeiro momento poderão até ser reduzidas, à custa de maior insegurança e menor qualidade para o passageiro, pois após o primeiro momento haverá concentração de demanda, já que as maiores empresas terão mais escala e força para enfrentar a concorrência", avalia.

Entenda o imbróglio jurídico que envolve o assunto

O assunto é complexo inclusive do ponto de vista jurídico. Duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) que afetam o setor – a de número 5549 e 6270 – tramitam atualmente no STF, ainda sem data para serem julgadas. Elas questionam a Lei 12.996 (de 2014), a Deliberação 955 da ANTT e o Decreto Presidencial 10.157, ambos de 2019.

O cerne da discussão está na definição de transporte coletivo interestadual e internacional: se é um serviço público ou atividade econômica em sentido estrito.

Se for considerada serviço público, a concessão de linhas se dará por meio de licitação – como ocorreu até agora. Por outro lado, se for caracterizada como atividade econômica em sentido estrito, bastará uma mera autorização da ANTT e o transporte de ônibus será basicamente equiparado a atividades como táxi e Uber.

"O serviço público é atrelado à satisfação de direitos fundamentais e deve ser submetido a regras de modicidade tarifária, continuidade e universalidade, o que não acontece com atividades puramente econômicas, desenvolvidas por particulares", explica o advogado André Portugal, professor da FAE Centro Universitário.

"Exceto por uma confiança cega e irracional na livre concorrência, pode-se afirmar que haverá no mínimo riscos de que itinerários deficitários deixem de ser feitos, bem como que as tarifas não obedeçam a critérios de modicidade. É bem possível que o STF repute que o decreto padece de alguma inconstitucionalidade", afirma o especialista.

A ANTT foi procurada para comentar as alterações legais nas regras do transporte rodoviário interestadual e internacional, mas não se posicionou até o fechamento da reportagem.

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