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Manifestação a favor das Dez Medidas de Combate à Corrupção
Manifestação em Curitiba a favor das Dez Medidas de Combate à Corrupção, em 2016, no auge da Lava Jato.| Foto: Marcelo Andrade/Arquivo/Gazeta do Povo

Na década passada, movimentos contra a corrupção proliferaram no Brasil como consequência dos protestos de 2013 e da Operação Lava Jato. Alguns grupos formularam listas das ações mais importantes de combate à corrupção no país – como as “Dez Medidas contra a Corrupção” e as “Novas Medidas contra a Corrupção”. E chegaram a encaminhá-las ao Congresso. Mas, com o passar do tempo e o desinteresse dos parlamentares, essas iniciativas caíram no esquecimento.

A Gazeta do Povo conversou com especialistas no combate à corrupção – alguns dos quais participantes ativos na produção daquelas listas – para perguntar: quais seriam, hoje, as medidas mais importantes para o combate à corrupção? Que propostas são mais urgentes para a realidade de 2021? As respostas desses especialistas foram compiladas pela Gazeta do Povo numa lista com seis medidas – justamente as mais citadas por eles.

Entre os especialistas ouvidos, um consenso: qualquer esforço para colocar em prática uma lista ou pacote de medidas contra a corrupção terá no Poder Legislativo, no Executivo e no Judiciário alguns adversários implacáveis.

Roberson Pozzobon, procurador da República e ex-membro da extinta força-tarefa da Lava Jato, relata, como exemplo disso, o desfiguramento promovido pelo Congresso, em 2016, das “Dez Medidas contra a Corrupção”, que ele ajudou a elaborar.

“Houve um plenário [da Câmara] numa madrugada em que essas medidas foram totalmente deturpadas e transformadas em medidas em sentido oposto. Não houve um prestígio por parte do Congresso dessa demanda por parte de mais de 1% da população brasileira – a gente está falando de 2 milhões de cidadãos brasileiros que assinaram fisicamente [o projeto de lei das Dez Medidas], e muitos outros que apoiaram por manifestos virtuais”, diz Pozzobon.

“Foi um balde de água fria em muitos. Por que isso aconteceu? Foi um momento que coincidiu com grandes acordos de colaboração premiada e de leniência que traziam ilícitos praticados por dezenas de parlamentares que estavam no exercício do cargo. Muitos políticos acabaram fazendo quase uma resposta de vingança, interrompendo o processo de aperfeiçoamento legislativo. Essa madrugada foi muito marcante, em sentido negativo, para a causa anticorrupção brasileira – a madrugada em que enterraram as Dez Medidas contra a Corrupção”, diz o procurador.

Além de Pozzobon, foram ouvidos Adriana Ventura (Novo-SP), deputada federal e presidente da Frente Parlamentar Ética Contra a Corrupção; Melillo Dinis, doutor em Sistemas de Controle da Corrupção pela Universidad del Museo Social Argentino e diretor do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE); Paulo Ganime, deputado federal (Novo-RJ) e autor de um pacote de nove projetos para o combate à corrupção que tramita no Congresso desde 2020; e Roberto Livianu, procurador de Justiça e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção.

Cada especialista foi consultado sobre as três medidas que considera mais importantes para o momento atual no Brasil. Todas as medidas citadas por pelo menos dois especialistas foram incluídas na lista final.

1. Restringir drasticamente o foro privilegiado

O fim do foro privilegiado é apontado unanimemente pelos especialistas como uma necessidade para o Brasil. Na visão deles, esse privilégio da lei, que hoje beneficia dezenas de milhares de integrantes do poder público no Brasil, deve ser concedido, no máximo, ao presidente da República e àqueles que integram sua linha sucessória.

“O foro privilegiado coloca algumas categorias que têm grande poder político e econômico em uma situação diferenciada no processo jurídico”, afirma Ganime. “A intenção original – e eu entendo isso – era evitar uso político de decisões de juízes. Mas na prática a gente vê o contrário: a concentração do poder sobre o STF ou o STJ nas mãos de poucos acaba privilegiando aqueles que têm o foro privilegiado, tanto pela morosidade do Judiciário quanto pela maior relação dele com a política, seja em uma relação republicana ou não. Há situações em que interesses escusos acabam protegendo políticos”, acrescenta o deputado.

“Houve uma decisão do Supremo restringindo o foro, mas ainda tem mais de 50 mil pessoas com foro privilegiado no Brasil. Isso não é razoável”, diz Pozzobon.

“Se quiserem restringir o foro só para aqueles que estão na linha sucessória direta da Presidência, esse é um critério razoável – deixar o foro para o presidente da República, o vice-presidente, o presidente da Câmara, o do Senado e o do Supremo. Interessante deixar essa estabilidade adicional", afirma o ex-procurador da Lava Jato. "Mas para quê tratar de forma diferenciada 58 mil pessoas, agentes públicos e políticos no Brasil? Isso significa que você não confia no Judiciário de primeiro e segundo grau? O foro privilegiado foi criado num tempo em que o acesso ao Judiciário era por indicação, e não por concurso público. Hoje a gente tem um Judiciário muito diferente, independente, com recursos… Não mais se justifica o foro privilegiado, se é que em algum momento se justificou.”

Adriana Ventura recorda que o projeto de lei sobre o fim do foro privilegiado “está vergonhosamente engavetado” no Congresso. “Foi aprovado por unanimidade na comissão especial no Senado, mas o fato é que não acontece nada, porque não interessa. É muito interessante ter mais de 50 mil pessoas que são intocáveis e estão acima da lei”, ironiza a deputada.

2. Retomar a prisão após condenação em segunda instância

Em 2019, o STF derrubou a possibilidade de prisão de condenados em segunda instância judicial, o que abriu brecha para a soltura de diversos políticos que estavam encarcerados por terem sido condenados por corrupção, como o ex-presidente Lula (PT).

Mas a decisão ainda pode ser revertida pela via legislativa, com a aprovação de uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que permita, novamente, a prisão nesses casos.

“A PEC da segunda instância é decisiva. A Justiça que tarda 15, 20 anos ou até a prescrição não é uma Justiça final. Um cara que embolsou milhões dos cofres públicos pode responder em liberdade por 10, 15, 20 anos ou até a prescrição? Isso não é Justiça”, afirma Pozzobon.

Para ele, uma Justiça desse tipo “causa a revitimização da sociedade”, já que o político condenado permanece no cargo, muitas vezes aprovando leis que favorecem sua situação, mas são nocivas para a sociedade.

“A gente está falando de alguém que está respondendo por corrupção. Qual é a chance de uma pessoa que está nessa circunstância aprovar qualquer projeto de lei que aperfeiçoe o sistema processual ou penal? Zero. Ele vai fazer justamente o contrário. Ele vai buscar plantar na legislação algumas armadilhas que vão tornar o sistema menos operante e eficiente no combate à corrupção”, diz Pozzobon.

Apesar de ser uma medida quase unânime entre especialistas no combate à corrupção, a PEC da prisão em segunda instância está parada na Câmara. “A comissão já está em funcionamento e já tem um novo presidente. O fato é que precisa ser discutida e votada, mas não tem vontade política, não é votada e nada acontece”, afirma a deputada Adriana Ventura.

3. Reforma política

A reforma política também é uma medida urgente para o combate à corrupção no Brasil, segundo os especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo. Recentemente, o tema voltou à pauta do Congresso, mas não no sentido que os especialistas defendem.

Roberto Livianu enxerga a necessidade de “uma reforma política profunda, verdadeira, partidária, não só política, mas de refundação dos partidos políticos”. “Temos um sistema apodrecido, em que se permite um conjunto de práticas nocivas para a sociedade. Há problemas sérios no financiamento da política, em relação à transparência e à integridade dos partidos”, afirma.

Para Melillo Dinis, uma reforma política no Brasil deve começar por três pontos: a reforma partidária, a redução de privilégios da classe política, e a diminuição da captura do orçamento público pelo Congresso. A reforma partidária, segundo ele, serviria principalmente para que os partidos no Brasil deixassem de ser “pequenas empresas e grandes negócios”.

Sobre a captura do orçamento público por parlamentares, Dinis critica o valor a que membros do Poder Legislativo têm acesso hoje e defende “que se impeça a proliferação de emendas parlamentares que sejam uma captura do orçamento público, com emendas paralelas, emendas de bancada e as benditas emendas individuais”. “Cada parlamentar no Brasil tem direito de emendas individuais de R$ 16 milhões por ano. Isso é mais do que têm direito ao orçamento federal 50% dos municípios brasileiros”, afirma.

Por último, Dinis destaca a necessidade de “evitar que haja os abusos do sistema político com relação ao uso do dinheiro de maneira não austera”. “Há diversas decisões do Congresso Nacional em que os parlamentares viabilizam uma série de benefícios inapropriados para uma ética republicana”, diz. “O dinheiro que um parlamentar ganha é 40 vezes o que um professor de educação básica no Brasil recebe. O auxílio-moradia de um juiz é quase três vezes o piso salarial de um professor de educação básica no Brasil.”

4. Reforma judiciária e no MP

Os especialistas apontam que a reforma do Poder Judiciário também ajudaria no combate à corrupção no Brasil. Segundo a dputada Adriana Ventura, “uma agenda de reformas estruturais no Poder Judiciário e no Ministério Público” seria importante.

“Tem muita indicação política [no Judiciário]. O objetivo seria reduzir a influência política nas indicações e realmente prezar pela qualidade técnica. Este ‘eu indico aqui que você me protege ali’ é muito complicado”, afirma ela. “Estamos na contramão do mundo.”

Pozzobon considera que seria importante “trazer maior transparência no processo de seleção dos ministros do Supremo”. Ele sugere a imposição uma quarentena prévia à indicação de ocupantes de funções políticas para cargos como ministro do STF, advogado-geral da União e procurador-geral da República. Ele considera importante melhorar “o escrutínio que se tem para uma indicação para um cargo tão importante como esse, um cargo vitalício, em que ministros passam 30, 35 anos [no cargo]”.

“Hoje, infelizmente, o que a gente vê é que, quando surge uma vaga no Supremo, começam os palpites e surge um nome que nem tinha sido aventado antes. Isso não é legal. Seria interessante que fosse assim: o presidente da República indica fulano e deixa 30, 60, 90 dias para que esse fulano seja escrutinado amplamente pela sociedade. O que ele fez? O que ele já decidiu? Qual é a experiência dele no Direito? Como ele já se posicionou sobre as grandes questões nacionais? Assim é que funciona nos Estados Unidos, e é assim que deve funcionar numa democracia. O sigilo e a aprovação apressada de integrantes à Suprema Corte, ao TCU [Tribunal de Contas do União] ou ao STJ [Superior Tribunal de Justiça] não interessa a ninguém. Eu acho que a gente poderia melhorar muito e restringir até eventuais interferências políticas nesses tribunais se a gente desse maior transparência ao processo de escolha”, afirma Pozzobon.

5. Melhorar a formação sobre política e a educação em geral

Para os especialistas consultados, é impossível escapar ao clichê: a educação é o ponto de partida para o combate à corrupção no Brasil. Eles apontam tanto a necessidade de disciplinas que abordem ética e política em programas curriculares como a importância da educação em geral, que forme melhores pessoas, capazes de eleger representantes políticos mais éticos.

“A medida das medidas é a educação”, diz Livianu. “Se tivéssemos melhor educação, teríamos melhores cidadãos e escolhas melhores.”

Dinis vê a necessidade de um programa nacional de educação escolar para o combate à corrupção. “É preciso criar uma cultura anticorrupção a partir das escolas brasileiras, públicas e privadas. Não há educação para isso no Brasil”, diz.

Segundo ele, precisaria haver “um pacto nacional com o Ministério da Educação e as secretarias de educação dos estados e municípios”. “Tem cartilhas sobre isso, tem material produzido, mas isso não está na pauta do Sistema Nacional de Educação.”

6. Combater os retrocessos

Um contra-ataque à série de retrocessos no combate à corrupção promovida por membros do três Poderes também é necessário, segundo os especialistas.

Para Roberto Livianu, é preciso reverter medidas que vão contra o combate à corrupção, como a proposta da nova Lei de Improbidade Administrativa, aprovada em junho na Câmara.

Ganime também destaca a importância de “bloquear qualquer iniciativa de retrocesso no combate à corrupção”. “A gente viu o pacote anticrime sendo desfigurado, a lei do abuso de autoridade, que também foi um retrocesso, e agora essa questão da improbidade administrativa”, diz.

O parlamentar vê a atuação dos meios de comunicação como essenciais para denunciar os retrocessos no enfrentamento à corrupção. “Sem a mídia – tanto a mídia tradicional quanto as redes sociais, os influenciadores –, a gente não consegue combater esses retrocessos”, diz. “Percebo que o Congresso e o Executivo se sentem empoderados para avançar em pautas contra o combate à corrupção quando a gente para de falar do tema e quando eles percebem que a repercussão pública de qualquer retrocesso não vai gerar grande impacto.”

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