Desde a noite desta terça-feira (13), juristas se mostram espantados com o teor das mensagens de auxiliares diretos do ministro Alexandre de Moraes que revelam que, para alimentar investigações contra apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro e comentaristas políticos de direita no Supremo Tribunal Federal (STF), ele próprio teria encomendado relatórios ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Esses documentos tinham alvos predeterminados, postagens em redes sociais escolhidas a dedo e medidas restritivas já adiantadas. Em público e no privado, criminalistas e constitucionalistas dizem que, se comprovada a participação do ministro, há desvios de conduta e crimes de responsabilidade que justificam o impeachment de Moraes pelo Senado.
Ainda na terça-feira (13), após a revelação das mensagens, em reportagens do jornal Folha de S. Paulo, o gabinete de Moraes defendeu sua atuação. Em nota, a equipe de Moraes disse que seus procedimentos “foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria-Geral da República”.
Os relatórios foram requisitados, diz ainda a nota, com base no “poder de polícia” do TSE, que “tem competência para a realização de relatórios sobre atividades ilícitas, como desinformação, discursos de ódio eleitoral, tentativa de golpe de Estado e atentado à Democracia e às Instituições”.
Já nesta quarta-feira (14), no início da sessão do Supremo, Moraes disse que seria "esquizofrênico" se "auto-oficiar" ao justificar pedidos de informações ao TSE. "Obviamente o caminho mais eficiente era solicitar ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), já que a Polícia Federal, num determinado momento, pouco colaborava com investigações", alegou Moraes. "Seria esquizofrênico eu, como presidente do TSE me auto-oficiar, até porque como presidente do TSE, no exercício do poder de polícia, eu tinha o poder de determinar a feitura dos relatórios", afirmou.
Mas, para juristas, há vários problemas no procedimento. O primeiro e mais importante é a sobreposição do papel de juiz ao de investigador e acusador, apontada há tempos na atuação de Moraes. Isso viola o princípio acusatório, segundo o qual o juiz é inerte, não toma nenhum dos lados numa investigação, e apenas decide a partir da provocação das partes envolvidas – a polícia, como órgão de investigação; o Ministério Público, que analisa as provas com o objetivo de acusar, aprofundar o inquérito ou pedir o arquivamento do caso e a defesa dos investigados, a quem cabe rebater as suspeitas e fazer valer seus direitos no curso do inquérito.
“As mensagens vazadas de Alexandre de Moraes comprovam as suspeitas, que existiam desde 2019, de que o ministro atua como investigador, procurador e juiz, usando a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE como ‘laranja’ para encomendar relatórios sobre o que gostaria de decidir, em que a iniciativa do ministro era ocultada ou disfarçada, o que pode caracterizar falsidade ideológica”, escreveu, nas redes sociais, o ex-procurador e ex-deputado Deltan Dallagnol, que chefiou a Operação Lava Jato no Paraná.
Em vídeo, ele apontou violação à regra do Código de Processo Penal que veda “a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”. Ao atuar como se fosse um procurador ou a polícia, Moraes teria ainda revelado parcialidade, o que o tornaria suspeito para atuar nas investigações contra apoiadores de Bolsonaro. A Lei do Impeachment diz que um ministro comete crime de responsabilidade se “proferir julgamento, quando, por lei, seja suspeito na causa”. Também pune com o impeachment o ministro que “proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções”.
“Se alegava erroneamente que na Lava Jato havia um suposto conluio entre juiz e procurador, nesse caso é mil vezes pior, não só porque existia e está comprovado, mas porque juiz e procurador eram uma só e única pessoa. Moraes usurpou a função pública do Procurador-Geral da República. Isso torna o ministro evidentemente impedido para todos esses casos e prova que ele decidiu mesmo sabendo que era impedido”, completou Dallagnol.
Princípio da inércia da jurisdição impede conduta de Moraes; impeachment se justifica
O advogado Ezequiel Silveira, que representa a Associação dos Familiares e Vitimas do 8 de janeiro, afirmou que "pelo princípio da inércia da jurisdição (art. 2º do Código de Processo Civil) exige-se a provocação de terceiros para que ações sejam tomadas em qualquer instância ou tribunal".
Assim, a iniciativa do ministro de buscar em redes sociais postagens de seus desafetos políticos e, em seguida, acionar um órgão sob sua responsabilidade para lhe provocar a iniciativa, seria ilegal. Um indício disso seria a suposta proposta de um dos servidores para criar um endereço de e-mail para enviar uma "denúncia" para seu próprio órgão.
"Não fosse assim o ministro poderia ter imposto as sanções às vítimas, de ofício, sem provocação de ninguém, o que não ocorreu. Ao revés, buscou-se maquiar o acionamento do TSE como se fosse iniciativa de terceiros e não do próprio julgador", disse Silveira.
Segundo ele, o sistema acusatório brasileiro proíbe que o julgador seja investigador e acusador no mesmo processo.
No mesmo sentido, o desembargador aposentado Walter Maierovitch, afirmou, em entrevista ao UOL, que Moraes passou do limite. “O Moraes não é delegado de polícia, um ministro do Supremo não tem poder para fazer investigações, ele acompanha. Ele entra no campo do abuso de poder, estrutura sendo usada para fim não previsto em lei”, disse o jurista. Uma das consequências, destacou, é o impeachment. “Ele vai responder pelo excesso que fez. E como responde um ministro do Supremo Tribunal Federal? Infelizmente só pelo impeachment. O Conselho Nacional de Justiça não tem nenhum poder sobre ministros do Supremo”, disse.
Defesa de Moraes invoca poder de polícia do TSE durante período eleitoral para justificar conduta
Na nota em que defendeu sua atuação, Moraes citou o poder de polícia do TSE. Trata-se da competência do juiz eleitoral, durante a época de campanha, para remover propagandas irregulares. Tradicionalmente, essa capacidade voltava-se para coibir algumas formas de propagandas nas ruas, com critérios objetivos de aferir a ilicitude. Por exemplo: outdoors com tamanho maior que o permitido.
Mas, nos últimos anos, por influência direta de Moraes, o TSE passou a analisar também o conteúdo de falas e manifestações políticas, sobretudo na internet, para considerar ilícitas aquelas que, no entender do ministro, ameaçavam a integridade e normalidade do processo eleitoral. Daí a suspensão de perfis de comentaristas que lançavam dúvidas sobre a imparcialidade do TSE na disputa presidencial e sobre a confiabilidade do sistema eletrônico de votação.
“O Poder Judiciário, apesar de inerte, tem determinadas prerrogativas, especialmente quando a gente olha para a Justiça Eleitoral, que tem administrativamente o poder de polícia, no sentido de determinar de ofício a prática de atos para que sejam colhidas provas e informações processuais”, disse Acacio Miranda, doutor em Direito Constitucional pelo IDP em Brasília.
“Nada de novo foi realmente revelado, porque tudo mundo sabia que a mesma pessoa que relatava [o inquérito das fake news, no STF] era a mesma que estava conduzindo o processo eleitoral, que estava com órgãos de polícia para proteger o processo eleitoral e poderes administrativos de realizar as eleições. Esta confusão era óbvia e esse áudio apenas está colocando à vista uma preocupação que todo mundo sabia que existia”, diz Antonio Carlos de Freitas Jr, que é mestre em Direito Constitucional pela USP.
Gabriel Quintão Coimbra, jurista que Integra a Comissão de Liberdade de Expressão da OAB, disse à reportagem que "o poder de polícia do TSE não tem nada a ver com a situação denunciada pela imprensa."
"O que se revelou foi um sistema abusivo, concentrando poderes de investigador, promotor, juiz e até vítima na mesma pessoa (Alexandre de Moraes), usando de forma desvirtuada o órgão de combate à desinformação do TSE para alimentar e direcionar o inquérito dos atos antidemocráticos no STF, enxertando alvos e situações de interesse pessoal e político do ministro relator, inclusive após as eleições quando já não incidia a alegação de poder de polícia da Justiça eleitoral", afirmou.
Segundo ele, o procedimento revelado nas mensagens de assessores buscaria camuflar uma suposta seletividade dos alvos e interesses pessoais e políticos de Moraes.
"Se fosse normal o procedimento, por óbvio o juiz instrutor do gabinete de Moraes no STF e seu braço direito, Airton Vieira, não teria demonstrado nas mensagens vazadas sua preocupação com essa interação informal e o registro verdadeiro de quem estava solicitando os relatórios e alterações em seu conteúdo, algumas por “cismas do ministro”, leia-se interesses pessoais, inclusive orientando o chefe do órgão de desinformação do TSE a cometer falsidade ideológica ao colocar o nome do juiz Marco Antônio Martins Vargas, lotado na Corte Eleitoral, como autor de tais pedidos sem que isso fosse verdadeiro", disse.
Na opinião dele, o desvio de finalidade do órgão que deveria lidar com casos de desinformação também pode configurar crime de improbidade administrativa.
Criminalista descarta argumento do papel de polícia e diz que ilegalidade está no ato de investigar
Para o professor e criminalista Eugênio Pacelli, a ilegalidade no procedimento revelado nas mensagens não estaria no exercício do poder de polícia pelo TSE, mas na encomenda de relatórios direcionados, supostamente por parte de Moraes por meio de seu juiz instrutor no STF, para alimentar o inquérito das fake news. “O que se destaca, em princípio, é o papel de investigação atribuído a ele [Moraes]. Apesar de ser o relator do IPL [inquérito policial], não cabe a ele [ministro] o papel de iniciativa investigatória”, explica.
Segundo a Folha de S. Paulo, os relatórios encomendados por Moraes no TSE foram usados por ele no STF para medidas criminais, como cancelamento de passaportes, bloqueio de redes sociais e intimações para depoimento à Polícia Federal. Entre os alvos do ministro estavam os jornalistas Rodrigo Constantino e Paulo Figueiredo, que residem nos Estados Unidos.
Possibilidade de punição no meio jurídico é duvidosa; impeachment de Moraes seria única via
Em áudios revelados pelo jornal, o desembargador Airton Vieira, que é juiz instrutor de Moraes no STF, orienta o perito Eduardo Tagliaferro, que à época era o chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED), do TSE, a compor relatórios com postagens específicas que teriam sido selecionadas por Moraes. “Peça para o Eduardo analisar as mensagens desse [Constantino] para vermos se dá para bloquear e prever multa", diz, segundo a Folha, uma mensagem de Moraes encaminhada por Airton Vieira a Tagliaferro, do TSE.
Para a professora e constitucionalista Samantha Ribeiro Meyer-Pflug, a consequência mais provável é a anulação das investigações contra os alvos do ministro. “As mesmas consequências impostas à Lava Jato e ao Sergio Moro”, diz ela, em referência ao arquivamento de investigações e à declaração de suspeição do ex-juiz.
Já a possibilidade de punição do ministro, no meio jurídico, é vista como duvidosa. Crimes comuns – como abuso de autoridade – só poderiam ser denunciados pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, que foi nomeado para o cargo com forte apoio de Moraes. O julgamento, em caso de denúncia por parte de Gonet, caberia aos demais ministros do STF.
Já crimes de responsabilidade podem ser apontados por senadores num pedido de impeachment de Moraes – a condenação, nesse caso, depende de articulação política no Senado, e que tem como obstáculo a proximidade de vários senadores com vários ministros do STF, que sempre rechaçam a punição para proteger a si mesmos contra iniciativas semelhantes.
A Gazeta do Povo enviou ao STF e ao TSE questionamentos a Alexandre de Moraes, a Airton Vieira e a Eduardo Tagliaferro sobre a regularidade de seus atos, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. O TSE informou que o perito Eduardo Tagliaferro e o juiz auxiliar Marco Antônio Vargas, que chefiava a assessoria contra desinformação, não integram mais o TSE.
Na sessão desta quarta-feira, Moraes defendeu sua atuação no plenário do STF. Disse que os relatórios serviam para preservar, como provas, as postagens consideradas por ele ilícitas. o caminho mais eficiente da investigação naquele momento era a solicitação ao TSE, uma vez que a Polícia Federal, lamentavelmente, num determinado momento, [era] pouco colaborava”, disse o ministro, acrescentando que tinha o poder, como presidente do TSE, de determinar a feitura dos relatórios.
“Hoje esse meio investigativo continua possível. Esse compartilhamento de provas, que é o meio admitido pelo STF, hoje, eu oficiaria a ministra Cármen [Lúcia], que é a presidente do TSE. Então eu, como presidente do TSE, determinava à assessoria que realizasse o relatório”, afirmou, em referência à Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED). Depois, destacou que todos os relatórios eram documentados e incluídos no processo, com ciência à PGR, podendo depois ser contestados pela defesa dos investigados. Por fim, reiterou que as manifestações investigadas tinham por finalidade incitar um golpe de Estado.
“Todos eles diziam sobre gabinete de ódio, fraude nas urnas eletrônicas, tentativa de golpe, o chamamento ao que depois ocorreu, em 12 de dezembro, no dia da diplomação, a depredação da Polícia Federal, aquele ônibus que foi incendiado aqui em Brasília, a glorificação da tentativa de bomba no aeroporto de Brasília nas vésperas do Natal, a tentativa de tumultuar a posse do novo presidente da República. Tudo isso já vinha sendo investigado tanto no inquérito das fake news quanto nas milícias digitais, e novos fatos foram sendo agregados. Lamentavelmente, todos sabemos e parece que alguns esqueceram, isso resultou na tentativa de golpe do dia 8 de é janeiro”, disse.
Nesta terça, o gabinete de Alexandre de Moraes já havia divulgado nota em sua defesa, após a publicação das primeiras reportagens da Folha de S. Paulo. Ela afirma:
“O gabinete do Ministro Alexandre de Moraes esclarece que, no curso das investigações do Inq 4781 (Fake News) e do Inq 4878 (milícias digitais), nos termos regimentais, diversas determinações, requisições e solicitações foram feitas a inúmeros órgãos, inclusive ao Tribunal Superior Eleitoral, que, no exercício do poder de polícia, tem competência para a realização de relatórios sobre atividades ilícitas, como desinformação, discursos de ódio eleitoral, tentativa de golpe de Estado e atentado à Democracia e às Instituições”, diz a primeira parte da nota.
“Os relatórios simplesmente descreviam as postagens ilícitas realizadas nas redes sociais, de maneira objetiva, em virtude de estarem diretamente ligadas às investigações de milícias digitais. Vários desses relatórios foram juntados nessas investigações e em outras conexas e enviadas à Polícia Federal para a continuidade das diligências necessárias, sempre com ciência à Procuradoria Geral da República. Todos os procedimentos foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria Geral da República”, cita ainda a nota, em sua conclusão.
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