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Fundos de investidores estão consternados com a situação amazônica. Pressão vai funcionar?
Fundos de investidores estão consternados com a situação amazônica. Pressão vai funcionar?| Foto: Mayke Toscano/AFP

Não é de hoje que o Brasil impulsiona a própria economia pelo consumo, ao invés de um crescimento consistente por meio de investimentos, públicos ou privados. Com PIB patinando e as reformas estruturais demorando a deslanchar, tudo o que o país não precisa é afugentar os investidores. E se havia alguma dúvida de que a situação ambiental, agravada pela repercussão do desmatamento e das queimadas na Amazônia, tinha potencial para afetar a economia, ele acabou com a publicação de um manifesto assinado por 230 fundos de investidores internacionais, que se dizem consternados com a situação da região no Brasil e também na Bolívia.

Juntos, esses fundos administram valores superiores ao PIB da China – estão sob sua gestão cerca de US$ 16,3 trilhões, enquanto a economia chinesa em 2018 alcançou US$ 13,2 trilhões. Apenas um desses fundos, o francês Amundi – principal da Europa e entre os dez maiores do mundo – tem sob sua gestão 1,4 trilhão de euros, cerca de R$ 6,34 trilhões – em 2018, o PIB brasileiro foi de R$ 6,8 trilhões. Há investidores de mais de 30 países assinando o documento, como HSBC Asset Management, o grupo francês BNP Paribas, o grupo japonês Mitsubishi UFJ Trust e entidades brasileiras, como a SulAmérica Investimentos.

"Como investidores, que têm o dever fiduciário de agir no melhor interesse de longo prazo de nossos beneficiários, reconhecemos o papel crucial que as florestas tropicais desempenham no combate às mudanças climáticas, protegendo a biodiversidade e assegurando serviços ecossistêmicos”, diz o texto. A carta é, também, uma resposta aos “donos do dinheiro”, que não querem estar associados a problemas ambientais.

Mas a preocupação dos fundos é clara: as empresas que estão expostas ao potencial desmatamento em suas operações no Brasil e em cadeias de suprimento poderão enfrentar dificuldade de acessar mercados internacionais. E isso pode ser revertido em perdas financeiras. Por isso, há uma cobrança direta para as companhias que atuam no país adotem uma série de medidas para reforçar compromissos ambientais. Nas entrelinhas, fica a mensagem de que há uma certa expectativa de ouvir uma declaração contundente, também, por parte do governo.

Recado claro: é a luz amarela

Fontes ouvidas pela Gazeta do Povo avaliam que o recado dado pelos fundos de investidores não poderia ser mais claro, ainda que o expediente escolhido não seja tão comum. “É inusual, mas relevante, porque a quantidade de fundos que endossaram a carta e a quantidade de ativos que representam, chamam a atenção para a relevância do assunto e o quanto o cenário mundial está de olho nisso”, comenta um advogado da área comercial, que pediu anonimato.

A temática ambiental é importante por si só, mas ganhou relevância do ponto de vista econômico. “Não dá para ignorar ou dar declarações superficiais, de que estão exagerando, que isso sempre existiu. Tem que parar, prestar atenção e tomar atitudes concretas para mostrar a preservação da floresta amazônica”, comenta.

Para ele, que tem ligação com esses fundos, o teor da carta não interfere em nada na soberania nacional. “Eles respeitam muito essa questão, mas pedem e fazem um alerta de que é importante mostrar medidas eficazes de proteção ao meio ambiente sob pena de os fundos deixarem de investir nas empresas se elas não estiverem comprometidas com isso. E a consequência da suspensão de investimento é falir, ficar em dificuldade financeira”, lembra.

Embora a carta não tenha gerado um impacto econômico imediato, ela acende uma luz amarela, porque é um movimento de engajameno. É o que pensa Rodrigo Marcatti, sócio-fundador da Veedha Investimentos. “As instituições fizeram uma carta colocando uma luz amarela. Não estão tirando dinheiro, nem nada radical, mas querem que as empresas nas quais eles investem, tanto no Brasil quando na Bolívia, [...] tenham mais preocupação com o meio ambiente”, avalia.

O fato de o assunto das queimadas no Brasil ter se espalhado pelo mundo é fundamental para essa reação. Marcatti analisa que houve muita repercussão negativa em relação à condução do assunto por parte, principalmente, dos governantes, o que levou a essa pressão dos investidores europeus. Eles querem saber como o dinheiro está sendo investido, se há uma preocupação exacerbada apenas com o resultado financeiro, que deixa a preocupação com o meio ambiente em um lugar secundário.

Isso fica claro nos quatro pontos destacados na carta. Os fundos querem que as companhias com atuação no país divulguem e implementem publicamente uma política de não desmatamento, com compromissos quantificáveis e prazo determinado, cobrindo toda a cadeia de suprimentos; avaliem operações e cadeias de suprimentos quanto ao risco de desmatamento e reduzam esse risco ao nível mais baixo possível; estabeleçam um sistema transparente de monitoramento e verificação para conformidade do fornecedor com a política de não desmatamento; publiquem relatórios anuais sobre exposição e manejo de riscos de desmatamento.

O risco para as empresas

O especialista em Direito Internacional do Peixoto & Cury, Saulo Stefanone Ale, lembra que há padrões internacionais, estabelecidos em diversas instâncias, que exigem que empresas observem critérios de preservação ambiental nas suas atividades.

Ele cita como exemplo a própria Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que o Brasil pretende ingressar e vem trabalhando fortemente nisso há anos. O próprio comitê de investimento do grupo exige que sejam observadas as questões ambientais. Além disso, há uma normativa que exige que instituições financeiras internacionais só autorizem concessões de empréstimos para companhias que respeitem as leis ambientais locais.

“Os fundos compram, circulam créditos decorrentes de operações e ações de empresas atuando no Brasil. Se há uma degradação do cenário ambiental no Brasil, o risco de atividade dessas empresas começa a subir”, pondera.

A professora de Direito Internacional da USP Maristela Basso ainda aponta que os países que não estiverem de acordo com esse regramento vão acabar ficando de fora do comércio internacional. Por causa das normativas, as empresas não podem investir em países que descumprirem essas regras porque não há justificativa. “Se o governo ainda tem alguma dúvida, que não tenha mais, porque [os fundos] estão expressamente declarando ‘que não vamos investir se a conjuntura não mudar’”, avalia. O cenário vislumbrado pela professora nesta situação é simples: quem já tem investimento no país, manterá até o final ou até obter uma autorização para retirada. Mas, não voltam no futuro.

Ela ainda lembra que essas grandes empresas investidoras, transnacionais, estão pari passu com estados soberanos, no que diz respeito ao direito internacional. “Se empresas americanas assinarem uma carta semelhante, o que restará para o [Donald] Trump [presidente americano]? Pouco, porque ele também depende dessas empresas para se reeleger em 2020”, projeta a professora.

O discurso do governo: apazigua ou inflama?

Todos esses componentes geram mais pressão e expectativa em torno do discurso do presidente Jair Bolsonaro (PSL) na Assembleia da ONU, na próxima semana. É certo que ele vai gerar resultados. A depender do conteúdo, poderá apaziguar a relação do Brasil com outros países e o mercado, ou inflamar de vez as coisas.

“O discurso da ONU vai ter uma influência direta. Ele tem que passar uma mensagem clara para o cenário internacional, de que o país está inteiramente comprometido com o meio ambiente, sem ficar atacando os outros. Esse tipo de discurso é péssimo, justificar o erro apontando o erro dos outros”, aponta um advogado da área comercial ouvido pela reportagem. Para ele, é preciso mostrar ações propositivas, medidas eficazes para a redução do desmatamento e o que está sendo feito para proteger a Amazônia.

Para o advogado Saulo Stefanone Ale, o discurso do governo tem atrapalhado a construção da imagem do produto que é vendido no Brasil. “Estamos falando da construção de uma marca Brasil e hoje, infelizmente, está muito associada a índices de degradação ambiental elevados, corretos ou não, e a um discurso muito forte”, comenta.

Ele lembra a polêmica sobre os dados de desmatamento, que o próprio governo contestou. O problema, na avaliação do especialista, é que essa imagem da devastação é a que “grudou” no imaginário internacional, especialmente na opinião pública e é preciso trabalhar para reverter isso de todo modo. “Existe uma pressão da opinião pública, não só no Brasil, mas na Europa e Estados Unidos. O consumidor final, que é quem dá valor às empresas, vai evitar a aquisição de produtos cujas marcas estejam relacionadas à degradação”, pontua.

Para Maristela Basso, professora da USP, o discurso na ONU é uma oportunidade rara para o governo esclarecer isso, dizer que foi mal interpretado e que a responsabilidade não é só do Executivo – Legislativo e Judiciário também têm sua parcela na questão. Ela lembra que o Código Florestal, feito pelo Congresso, tem sido contestado na Justiça, que dá decisões contraditórias e gera insegurança jurídica. “Ele pode dividir essa responsabilidade com outros órgãos, pode fazer uma conversa conciliadora interna, com Executivo, Legislativo e Judiciário alinhados na defesa do meio ambiente”, sugere.

A oportunidade de explicar isso de forma mais detalhada é positiva, ainda mais que os investidores também esperam um tipo de resposta. “Diante da comunidade internacional, nós estamos errados, descumprindo acordos internacionais. O ambiente hoje é patrimônio comum da humanidade, não adianta trazer a questão da soberania”, aponta Maristela.

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