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O que são as milícias e por que é tão difícil combatê-las
| Foto: Henry Milleo/Arquivo/Gazeta do Povo

Citadas nominalmente no pacote anticrime enviado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, ao Congresso Nacional, as milícias permeiam o noticiário policial há décadas no Brasil. Nem sempre foram vistas como grupos criminosos, mas isso vem mudando.

Apesar de muito parecidas com outras organizações do crime, as milícias têm características específicas que tornam o combate às suas atividades criminosas mais delicado em um Brasil que já se acostumou a se deparar com o termo nas páginas dos jornais – e em discursos políticos.

A operação mais recente contra milícias foi deflagrada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro nesta quinta-feira (2), na comunidade da Muzema, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. No mês passado, o desabamento de dois prédios na comunidade deixou um saldo de mais de 20 pessoas mortas. Os imóveis, que foram construídos pela milícia, eram irregulares e chegaram a ser interditados pela prefeitura duas vezes.

O chefe da milícia em Muzema, segundo o Ministério Público, é o major Ronald Paulo Alves Pereira, preso no início do ano passado na operação Os Intocáveis. Pereira também é investigado por participação no Escritório do Crime, grupo de matadores profissionais investigado por suspeitas de envolvimento no assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), em março do ano passado.

Desde o assassinato da vereadora, a polícia suspeita do envolvimento de milícias no crime. Em março, o sargento aposentado Ronnie Lessa foi preso por suposto envolvimento na morte de Marielle e do motorista Anderson Gonçalves. Agora, os policiais investigam o elo de Lessa com a milícia que atua na Gardênia Azul, Zona Oeste do Rio.

As atividades das milícias no Rio de Janeiro vão além dos assassinatos e construção de imóveis. Essas organizações criminosas também estão envolvidas na venda de botijões de gás, água mineral, fornecimento de serviços de internet e TV a cabo piratas, na cobrança para atuação de serviços clandestinos de transporte de pessoas, no roubo de combustíveis e na extorsão de moradores e comerciantes de áreas de baixa renda, só para citar alguns exemplos.

Estima-se que cerca de 2 milhões de pessoas vivam sob influência de milícias no Rio de Janeiro. Esse tipo de organização criminosa está presente em pelo menos 165 comunidades. Uma pesquisa feita em fevereiro pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Datafolha, mostrou que as milícias são vistas como principal ameaça por 29% dos moradores de comunidades do Rio de Janeiro. Os traficantes aparecem numericamente em segundo lugar na lista de preocupações, com 25%.

Diferenças entre milícias e outras organizações criminosas

Apesar de desenvolver algumas atividades parecidas com a de facções criminosas – inclusive tráfico de drogas, em muitos casos –, as milícias carregam diferenças significativas em relação a outras organizações, que tornam seu enfrentamento muito mais complexo.

“A primeira diferença, mais flagrante, é o fato de as milícias serem lideradas, coordenadas, por agentes do Estado. Hoje em dia já existe uma diversificação no modo de atuação das milícias, que abrange pessoas ditas civis, mas no seu início elas eram compostas basicamente por agentes do Estado”, explica a socióloga e pesquisadora de pós-doutorado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Thais Duarte. Ela é co-autora do livro “No Sapatinho: A evolução das milícias no Rio de Janeiro”, que estudou esses grupos entre 2008 e 2011.

Outra diferença, segundo a socióloga, é o fato de as milícias nem sempre terem sido encaradas como um problema de segurança pública. “Elas surgiram com um discurso forte de legitimação de que iriam retirar determinadas comunidades do jugo do tráfico de drogas. Mais recentemente, já existem denúncias da vinculação de milicianos ao tráfico de drogas”, diz Thais. “Existe uma confusão também, nos anos 2000, de que as milícias seriam consideradas um mal menor, como uma espécie de autodefesa comunitária em comparação, por exemplo, ao tráfico de drogas”, completa.

Recentemente, o governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), nega que as milícias sejam o principal problema do estado, o que mostra a dificuldade em encontrar respaldo político no combate a essas organizações. “Não acredito que a milícia seja a principal chaga do estado, não. Ela é uma organização criminosa, que estamos combatendo", disse ele, em entrevista à rádio CBN, em abril.

O perfil socioeconômico dos integrantes é outra diferença das milícias para outros grupos criminosos, segundo a socióloga. “É mais alto em relação aos jovens do tráfico, que em geral são negros, moradores de periferia, com baixa escolaridade e baixa renda”, explica.

Traficante é 'facínora', miliciano é 'personalidade política'

A legitimação política das milícias também é uma característica que as diferenciam, além de ser um dos motivos pelos quais é tão difícil combater esse tipo de crime. “A dimensão política é a principal diferença deles para membros do tráfico, de facções. As pessoas do tráfico são vistas como facínoras, vão ser presas ou assassinadas pela polícia, enquanto o miliciano é uma personalidade política”, diz o professor e sociólogo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), José Cláudio Souza Alves, que estuda o assunto há 26 anos.

“As milícias foram ganhando muito respaldo político. A ponto de vermos deputados eleitos que contratam milicianos e familiares de milicianos”, ressalta o professor de antropologia do direito Welliton Caixeta Maciel, pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília (UnB).

Para se ter uma ideia, o major preso pela polícia do Rio de Janeiro acusado de chefiar a milícia responsável pelos prédios que desabaram em Muzema já foi homenageado na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) “pelos importantes serviços prestados ao estado”. A homenagem foi proposta pelo então deputado Flávio Bolsonaro (PSL), hoje senador.

Flávio também homenageou o ex-tenente da PM Adriano Magalhães da Nóbrega, atualmente foragido e acusado de também ser chefe de milícia. O então deputado estadual também empregava a mãe e a mulher de Nóbrega em seu gabinete.

O presidente e as milícias

O próprio presidente Jair Bolsonaro (PSL) já endossou a atuação de um esquadrão da morte que atuava na Bahia, em 2003. “Quero dizer aos companheiros da Bahia – há pouco ouvi um parlamentar criticar os grupos de extermínio – que enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo” disse Bolsonaro, então deputado federal, em discurso no plenário da Câmara.

O deputado Bolsonaro também defendeu o ex-PM Adriano Nóbrega no plenário da Câmara dias depois de o ex-tenente ser condenado a 19 anos de prisão por assassinato. Em seu discurso, pediu ajuda da então deputada federal Denise Frossard, ex-juíza criminal, para reverter a condenação de Nóbrega.

Como surgiram as milícias

Apesar do grande poder político, as milícias são um fenômeno relativamente recentes no Rio de Janeiro: começam a emergir a partir dos anos 2000. Mas os grupos têm raízes que vêm da época da ditadura militar, segundo o sociólogo José Alves.

“Em 1967 a ditadura cria a Polícia Militar como força auxiliar ao regime, uma força repressiva e ostensiva, feita para atuar nas ruas. A partir da criação dessa Polícia Militar inicia-se a formação de grupos de extermínio na Baixada Fluminense. Eles eram financiados por empresários e comerciantes dessa região e eram apoiados politicamente pela ditadura empresarial-militar”, diz o especialista.

A partir dos anos 1980, esses grupos começam a integrar civis em suas estruturas, segundo o sociólogo, mas as organizações continuam sendo gerenciadas por integrantes do Estado. Uma nova modificação ocorre na década de 1990, segundo Alves, quando integrantes dos grupos de extermínio começam a entrar para a política. “Eles se elegem vereadores, deputados estaduais e também prefeitos [da Baixada Fluminense]”, explica.

“As milícias tal como temos hoje vão emergir a partir dos anos 2000”, explica Alves. “A diferença principal para o grupo de extermínio é que elas vão além. As milícias mantêm a base de grupo de extermínio – são agentes de segurança pública, organizados a partir da lógica de extermínio e da cobrança de taxa de segurança –, mas a mudança principal é o leque de bens e serviços que eles vão passar a controlar e monopolizar a partir do controle armado, do controle militarizado de áreas geográficas”, continua.

É a partir deste momento que os milicianos passam a controlar a venda de água, de gás, de cigarro, de TV e internet piratas, de imóveis, de terrenos, de aterro, o transporte clandestino de pessoas, entre outros serviços. “Eles criam uma gama muito grande de bens e serviços que monopolizam e controlam, e impõem à sua população”, completa Alves.

Segundo Maciel, as causas que favoreceram o surgimento das milícias passam pela desigualdade social. “Passa pela estrutura de Estado baseado na diferença de classes, de etnias, pela própria constituição do Estado em si. É essa ausência do Estado em prover trabalho, moradia, educação, saúde, habitação digna, saneamento básico, transporte”, explica.

A dificuldade em combater as milícias

Além da legitimação política conquistada por membros das milícias, o fato de as organizações serem formadas por agentes do Estado são um componente adicional para a dificuldade em combatê-las.

“São agentes de segurança pública e vão ter informações privilegiadas pelo papel que eles ocupam dentro do Estado, eles se protegem”, explica Alves. “Ele [miliciano] não sofre qualquer tipo de punição ou atuação do Estado porque controla a estrutura do Judiciário, está na ponta da estrutura do Judiciário, de investigação, patrulhamento, das dimensões do controle de segurança. Ele é intocável. Isso lhe dá um poder muito maior de qualquer traficante, qualquer matador nos moldes anteriores”, completa o sociólogo.

Em 2007, o então deputado estadual do Rio de Janeiro Marcelo Freixo (PSOL) propôs uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a atuação das milícias no estado. A CPI foi aberta no ano seguinte, depois que uma repórter, um fotógrafo e um motorista do jornal O Dia foram sequestrados e torturados na comunidade do Batan, enquanto investigavam a atuação de milícias na região.

A comissão durou cinco meses e pediu o indiciamento de 266 pessoas suspeitas de envolvimento com milícias. Entre os suspeitos estavam sete políticos. Embora o número de prisões de milicianos tenha aumentado no ano seguinte à CPI, os números voltaram a cair em anos posteriores. Apenas três políticos foram condenados pela Justiça, e eles não perderam seus mandatos.

Por onde passa a solução?

Para especialistas em segurança pública, o país ainda está longe de um combate sério às milícias. Segundo Alves, o atual governo não tem propostas eficientes de enfrentamento a esse tipo de organização criminosa, e o governo anterior – de outro espectro ideológico – também não foi capaz de trazer soluções.

“Como é uma rede muito grande, você teria que fazer operações mais amplas no espaço e mais longitudinais no tempo que permitissem impactos mais duradouros e eficazes sobre a estrutura da rede como um todo”, diz o sociólogo. Esse, segundo Alves, é o primeiro passo, no curto prazo, para atacar o problema.

Duarte defende, ainda, a criação de pequenas forças-tarefas para investigar crimes relacionados a milicianos. “Tem de ser feitas atividades de inteligência, compostas por poucos agentes do Estado para não vazar determinadas informações e que se vincule uma força-tarefa formada por vários agentes do sistema de justiça criminal”, defende a pesquisadora.

Para Alves, ações de longo prazo também devem ser colocadas em prática, paralelamente, para tentar atacar as causas que levam à formação e ao fortalecimento de milícias. Uma das propostas defendidas por ele é a desmilitarização da PM. “Enquanto a polícia tem essa estrutura hierarquizada, de subordinação, de cumprir comando, isso faz com que essa dimensão da corrupção e da própria organização criminosa dentro da polícia se fortaleça”, explica o sociólogo.

Os especialistas também defendem uma mudança na política de guerra às drogas adotadas pelo Estado. “Se ela [polícia] tratar, por exemplo, a questão das drogas como uma questão de guerra às drogas, você vai estar fortalecendo esses grupos de policiais [envolvidos com milícias], porque eles jogam na lógica da execução sumária, do confronto, da guerra. Eles dominam muito bem esse campo. Se você mantém a lógica da guerra, você vai fortalecer esse grupo”, diz Alves. “Do outro lado, se você mantém a guerra à droga você também faz com que o mercado da droga seja muito elevada”, completa.

“Uma forma de quebrar as pernas tanto das milícias quanto das facções seria legalizando o comércio de alguns tipos de drogas, como maconha”, concorda Maciel.

“O tráfico é um inimigo construído. Se na época da ditadura você construiu um inimigo e o inimigo era o comunismo, hoje o nosso inimigo é construído por toda uma política de segurança pública, é o traficante, o ladrão, o bandido, enquanto a milícia não é arranhada. O miliciano não é negro, pobre, morador de favela, você não vai ver o miliciano nessa condição. Quem está nessa condição é o traficante, então ele vai ser identificado como inimigo a ser eliminado, a ser morto”, critica Alves.

Investimentos sociais

O combate ao fortalecimento das milícias também passa por pesados investimentos sociais, segundo os especialistas. “Exigiria que o Estado invertesse a pauta. Hoje é um Estado que quer fazer cortes nos investimentos públicos porque considera isso como gastos. Eu estou dizendo o contrário, o Estado tem que investir no social pesadamente”, defende Alves.

Para o sociólogo, são necessários grandes investimentos para garantir a permanência dos jovens que estão nas áreas mais violentas na escola, por exemplo. “Eles têm que ter acesso a atividades socioculturais nas escolas, têm que ter escolas abertas à noite e aos finais de semana, têm que ter acompanhamento psicológico, assistência social para acompanhar a lógica de cada família, têm que ter acesso a mobilidade urbana, têm que ter urbanização das áreas onde moram porque são áreas imensamente degradadas, destruídas, têm que ter programas de renda que deem a esses jovens capacidade de ter acesso a renda e a trabalho”, explica o pesquisador. “É um conjunto de ações sociais que outros países fizeram e que deram resultado e que teria que ser feito a longo e médio prazo”, completa.

“Outra forma seria reestruturando o sistema penitenciário, pensando em meios de cumprimento de pena menos desumanos e formas alternativas, com tornozeleira eletrônica e outros meios de cumprimento de pena em meio aberto”, defende Maciel. “Seria uma forma de desarticular o crime, diminuir essa população carcerária que hoje é um verdadeiro exército para o crime”, ressalta.

Pacote proposto por Moro não vai alterar o cenário

Citado no início desta reportagem, o pacote anticrime apresentado por Moro propõe que fique explícito na lei que milícias são organizações criminosas. A medida é inspirada no Código Penal Italiano, que cita nominalmente grupos da máfia em seu texto.

Apesar da medida, os pesquisadores criticam o teor do pacote apresentado pelo ministro da Justiça, alegando que ele, na verdade, fortalece as milícias. Para Alves, o ponto mais crítico do projeto é o que trata do excludente de ilicitude para policiais que matarem civis em decorrência de "escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

“Sabe-se perfeitamente que se cria um estado sem garantir direitos, sem proteção social, sem políticas de proteção para essa população e a tendência é aumentar muito essa realidade de violência, os grupos criminosos, os confrontos, fortalecendo um dos lados, que é o lado das milícias”, defende o pesquisador da UFRRJ. “A meu ver, esse pacote é um pacote para beneficiamento dessa estrutura que será beneficiada, que é a estrutura da milícia”, completa.

“Esse pacote anticrime é um cavalo de Troia”, critica Maciel. “É mais punitivista, não traz solução nenhuma, apenas agrava a situação”, afirma o professor da UnB.

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