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Atuação das milícias no Rio de Janeiro é mais perigosa do que o tráfico de drogas
Atuação das milícias no Rio de Janeiro é mais perigosa do que o tráfico de drogas| Foto: AFP / Mauro Pimentel

As investigações sobre a morte da vereadora Marielle Franco (PSOL) e o desabamento de dois prédios que matou 20 pessoas na comunidade de Muzema, na zona Oeste do Rio de Janeiro, são dois dos episódios mais recentes que evidenciam a atuação das milícias no estado. Há tempos esse tipo de organização deixou de apenas prestar serviços clandestinos de segurança nas comunidades e passou a ocupar espaços na vida pública do estado.

Os problemas trazidos pelas milícias para a segurança pública são evidentes até para observadores mais desatentos. Execuções sumárias, ameaças, extorsão e exploração de bens e serviços envolvendo operados pela milícia são noticiados todos os dias. Mas, quem acompanha a atuação de milicianos de perto também aponta para outro problema, menos visível: a ameaça à democracia.

Não é de hoje que milicianos ocupam espaços na vida política no Rio de Janeiro. Uma CPI instalada na Assembleia Legislativa do Estado em 2008 apontou o envolvimento de diversos políticos com milícias. Deputados estaduais e vereadores do Rio de Janeiro chegaram a ser presos e condenados posteriormente pela Justiça pela participação nesse tipo de organização criminosa.

Isso não fez com que a organização política das milícias fosse vencida. “Eles conseguem ter essa estrutura política e econômica e estão agora aprofundando essas estruturas”, afirma o professor e sociólogo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), José Cláudio Souza Alves, que estuda o assunto há 26 anos. Ele participou no início de junho de um evento promovido pelo Fórum Permanente de Segurança Pública do Rio de Janeiro na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj).

Presidente da CPI das Milícias na Alerj em 2008 e atual deputado federal, Marcelo Freixo (PSOL) acredita que falta vontade política para combater a influência das milícias no Rio de Janeiro, o que permite que elas continuem crescendo e exercendo um poder perverso sobre a vida dos fluminenses. “É uma grande ameaça à democracia porque submete a vida das pessoas a um outro lugar de poder, a uma outra instância legal, ou ilegal. É grave, e vai piorando sistematicamente”, aponta.

Investigar as milícias nos anos 2000 era a atribuição de Cláudio Ferraz, delegado da Polícia Civil no Rio de Janeiro, que já foi titular da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco). Ele concorda com a avaliação dos colegas de que a ameaça das milícias vai além da segurança pública.

“Quando você se estabelece em uma área e começa a criar monopólios, está atacando o livre mercado, o livre comércio, que é um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Quando você cria currais eleitorais, você está minando, vilipendiando, a própria democracia", argumenta. Ele explica que cria-se, então, um círculo vicioso em que a população permanece em estado de necessidade enquanto a milícia mantém o domínio do curral eleitoral e obtém ganho financeiro sobre a comunidade.

Respaldo cultural e religioso

Um dos motivos do crescimento das milícias nas estruturas de poder no Rio de Janeiro é o respaldo cultural e religioso que essas organizações encontram nas comunidades onde atuam. Em algumas comunidades, as milícias foram aceitas porque os moradores viam essas organizações como um "mal menor", que buscava solucionar o problema da violência que as polícias não conseguiam resolver.

O sociólogo José Cláudio Souza Alves relata a conversa de um amigo da Baixada Fluminense com um pastor. "O pastor falou que a milícia é santa para tentar resolver questões da violência naquela região. Se elege um inimigo que tem que ser abatido", afirma.

O problema é que ainda há um imaginário em parte da população de que a milícia é um grupo formado por policiais e ex-policiais, civis e militares, e que são grupos de extorsão de serviços, como transporte alternativo. O presidente do Fórum Permanente de Segurança Pública do Rio de Janeiro, desembargador Alcides da Fonseca Neto, explica que esse era o cenário há 15 anos. “Milícia hoje é grupo político, grupo de poder. Milícia se forma hoje dentro do Estado e é por isso que é tão difícil, ou talvez, infelizmente hoje, impossível combater a milícia”, desabafa.

Em busca do lucro

A milícia quer lucrar com suas atividades ilegais, que são diversas. Vão desde a exploração de serviços como o transporte clandestino, passam pela construção e venda de moradias irregulares, como no caso em Muzema, e na prestação de serviços clandestinos de vigilância.

O desembargador Alcides da Fonseca Neto lembra de um caso não tão usual: a Praça Seca, uma região do Rio de Janeiro onde os milicianos emitiram boletos bancários e colocaram na porta dos moradores – uma cobrança por segurança na região. “O pagamento era à vista ou em seis prestações. O morador podia escolher”, conta. Para ele, o que gera mais perplexidade nesse exemplo é que não havia preocupação em saber que esse dinheiro poderia ser facilmente rastreado.

O delegado Cláudio Ferraz defende que o entendimento de que as milícias, assim como outras organizações criminosas, buscam o lucro pode ajudar a quebrar o mito de que os grupos protegem as comunidades nos locais onde o estado não é capaz de atuar. "É uma empresa buscando o lucro. Não há ideologia de direita, de esquerda, não há absolutamente nada. Não há questão de proteger contra o inimigo", defende. Nessa toada, argumenta o delegado, a busca de poder político é uma forma de maximizar esse lucros.

Para atingir esse objetivo, o ponto central da atuação das milícias, segundo Ferraz, é a corrupção de agentes do Estado. E há três formas de atuação. A primeira é cooptação do agente. Se não dá certo, a etapa seguinte é a de intimidação. A última abordagem é a eliminação.

Problema é mais grave do que o tráfico de drogas

A evolução da atuação das milícias é mais preocupante que o tráfico de drogas. Na avaliação do desembargador Alcides da Fonseca Neto, é objetivo desses grupos tomar conta do tráfico, para comandar as operações que envolvem drogas e armas. E isso pode transformar o Rio de Janeiro em um "narcoestado". "Se nós nos transformarmos,seja daqui um ano ou mais, em um narcoestado, a pergunta é: quem vai eleger os vereadores, os deputados estaduais, os deputados federais o prefeito e o governador? As pessoas não pararam para pensar nisso ainda", completa.

Para o deputado Marcelo Freixo, a diferença entre a atuação das milícias e do tráfico é que os milicianos transformaram o domínio territorial em eleitoral. "O irmão do [traficante] Marcinho VP foi candidato, mas não conseguiu se eleger deputado estadual. O Cabral teve 75% dos votos naquela região. Quem domina aquela região? Bobagem achar que é quem está com arma na mão”, exemplifica.

É a capacidade de se infiltrar em estruturas do Estado que torna a milícia um crime mais organizado que o tráfico de drogas, na visão de Freixo. “Quanto mais organizado é o crime, menos conflito ele precisa, menos armas ele precisa. Por razões óbvias. O crime mais organizado é o mais eficiente. Um crime que precisa dar muito tiro é desorganizado. O crime que precisa de muito confronto com o Estado é desorganizado. Quanto mais paralelo ele é, menos organizado ele é. Quanto mais dentro do Estado, quanto mais relação de poder, menos arma precisa, menos enfrentamento precisa”, avalia.

Enfrentamento passa por políticas públicas

O enfrentamento ao poder das milícias passa, necessariamente, por políticas públicas, segundo os especialistas. Diminuir a presença dessas organizações implica em presença do poder público e planejamento para oferecer serviços públicos de qualidade.

Para Freixo, o caso não é só um problema de segurança, por causa do tipo de estrutura de máfia dessas organizações. "Não adianta só prender os milicianos, como a gente conseguiu na época da CPI. Você tem que tirar deles o braço econômico e o braço territorial. Se não fizer isso, só a prisão não resolve. A prisão não foi capaz de deter as máfias em nenhum lugar do mundo", argumenta.

O delegado Cláudio Ferraz defende que é preciso oferecer alternativas à população dominada pelas milícias. "Sempre se questiona a população apoiar esse tipo de organização, mas também em que condições essa população está sendo instada a se manifestar? Seria, com as devidas proporções, perguntar para a pessoa se ela prefere ser morta com um tiro ou dez. A morte é inevitável", afirma.

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