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Supremo Tribunal Federal, o STF, gostar de fazer acrobacias jurídicas de vez em quando, como no caso do passaporte vacinal.
A estátua da Justiça diante do prédio do Supremo Tribunal Federal.| Foto: Rosinei Coutinho/STF

O tema do combate à corrupção perdeu força na opinião pública nos últimos anos, depois de uma onda nacional de apoio à causa em meados da década de 2010. E um dos motivos disso, para especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, é que o próprio Poder Judiciário, responsável por condenar os culpados de práticas corruptas, abriu brechas para a corrupção sistêmica.

Nos últimos anos, órgãos de controle da corrupção na Justiça brasileira relegaram a segundo plano suas atribuições originais e, em alguns casos, passaram por uma tendência à politização. O principal deles, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – criado em 2004 justamente com o objetivo de garantir a integridade do Poder Judiciário –, não escapa a isso. O resultado, segundo os juristas, é que a corrupção na Justiça não tem sido punida com rigor.

Até mesmo para o combate ao tipo mais comum de corrupção entre juízes, a venda de sentenças, a omissão das corregedorias internas de tribunais se faz notar. O CNJ, que foi criado para combater essa omissão, foi paulatinamente deixando de lado essa atribuição. São raros os casos de condenação de juízes e, quando isso ocorre, a punição tende a ser muito branda.

Em abril de 2021, por exemplo, o desembargador Amado Cilton Rosa, do Tribunal de Justiça de Tocantins (TJ-TO), líder de um esquema de venda de sentenças e de fraudes em cobranças de precatórios, foi finalmente condenado pelo CNJ após mais de 10 anos de um processo que começou em 2010. A sua punição, no entanto, foi a aposentadoria compulsória com proventos proporcionais ao tempo de contribuição – ou seja, embora tenha sido impedido de atuar como magistrado, continua recebendo o salário parecido com o de um juiz, e não sofreu nenhum tipo de sanção civil ou criminal.

Um levantamento de 2019 do jornal O Estado de S. Paulo mostrou que, dos 17 juízes e desembargadores punidos pelo CNJ entre 2007 e 2018 por venda de sentenças, somente um foi julgado e condenado criminalmente pelo conselho.

“Aquele órgão, que foi criado para modernizar o Poder Judiciário e também combater a corrupção, hoje tem um trabalho efetivamente de modernização, de organização, de uniformização da jurisprudência administrativa. Mas a atuação da corregedoria como um órgão censor é pífia”, avalia Eliana Calmon, ex-corregedora nacional de Justiça e ministra aposentada do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Segundo ela, a atuação da corregedoria do CNJ foi mais forte durante sua própria gestão e na de seu antecessor, o ministro aposentado Gilson Dipp. “Isso despertou o interesse dos políticos, que começaram a fazer a colocação de indicações políticas para o CNJ e também para os próprios tribunais. Pararam de colocar esses juízes mais aguerridos e que tinham a tendência de querer fazer um expurgo dentro do Poder Judiciário. Colocaram juízes mais amenos”, diz ela.

A ex-corregedora afirma que uma das principais conquistas de sua época como ministra, que foi o reconhecimento pelo STF de que o CNJ poderia investigar juízes de primeiro grau, perdeu-se depois de seu mandato. “Isso ficou como letra morta. A corregedoria não faz mais isso. A questão disciplinar, para o CNJ, é como se fosse uma atividade inexistente. O corregedor abre sindicância, fecha sindicância, mas só no papel. Fica nesse ‘reme reme’ de pedir mais uma diligência, outra diligência, e não resolve nada. No final de tudo, manda arquivar.”

Para Jorge Derviche Casagrande, advogado especialista em compliance, o CNJ perdeu sua relevância. “Uma coisa era o CNJ logo que ele tinha sido instaurado, com as funções constitucionais puras dele. O texto constitucional falando das funções do CNJ é uma coisa maravilhosa. Mas quando a gente lida com os poderosos, e especialmente com poderosos que podem não ter interesse de ser investigados, a gente precisa de uma eterna vigilância. E, ao longo do período em que o CNJ funcionou bem, ele foi cada vez mais desidratado. Ao passo que, hoje, é um órgão que, disciplinarmente, é muito diferente daquele órgão que foi criado lá atrás”, diz Casagrande.

O reflexo dessa "crise de vocação", segundo Casagrande, pode-se ver nas próprias redes sociais do órgão. “O Instagram do CNJ dá dicas de dieta, fala do Detran, fala sobre o seu pet, mas ele não fala de nada sobre atribuição disciplinar. É uma piada aquilo. A mordaça começa no próprio departamento de comunicação social do CNJ”, diz.

Procurado pela reportagem da Gazeta do Povo para falar sobre a corrupção no Poder Judiciário brasileiro, o CNJ afirmou que não poderia colaborar, com a justificativa de que a Lei Orgânica da Magistratura Nacional “impede manifestações sobre casos que estão ou que podem vir a ser analisados pela corregedoria”.

Corregedorias internas dos tribunais também são ineficazes, diz especialista

Casagrande lembra que o principal motivo para a criação do CNJ foi a acusação de corporativismo que pairava contra as corregedorias internas de tribunais brasileiros. Contudo, a desidratação do CNJ fez com que o conselho fosse ficando, aos poucos, novamente abaixo das corregedorias dos próprios órgãos. E, com isso, as irregularidades deixaram de ser combatidas com o mesmo vigor.

Ele explica a dinâmica da corrupção nesses tribunais: “Imagine uma pequena corte com 11 ministros de um tribunal muito pequeno. Quantas vezes os ministros são presidente, vice-presidente ou corregedor? Eles estão sempre aí. Então, quem é vice-presidente vira presidente, quem é corregedor vira vice-presidente e escolhe um corregedor. São cargos que rotacionam. Eu sou corregedor agora e vou julgar um cara que, amanhã, vai ser o meu corregedor também. Isso acontece em uma corte com 11 pessoas, e vai se reproduzir em uma com 30”.

Eliana Calmon diz que “o corregedor, hoje, não encontra respaldo no seu colegiado, porque o colegiado foi politizado, e não quer se desgastar com a abertura de processos que ele sabe que não irão à frente”. “Hoje, todo mundo que combateu a corrupção está sendo execrado no mundo político e no Poder Judiciário, haja vista os magistrados que participaram da Lava Jato”, comenta ela.

CPI da Lava Toga resolveria o problema?

Diante dessa realidade do Poder Judiciário, a instauração da CPI da Lava Toga não seria uma luz no fim do túnel? Os especialistas consultados pela Gazeta do Povo são céticos em relação a essa possibilidade.

“O problema da CPI é que ela também é política. A última CPI do Judiciário foi nada mais que uma jogada de poder. Quem garante que esta próxima CPI que querem criar não seja uma jogada de poder? Não se sabe. Mas, institucionalmente, eu vejo que o Legislativo pode e deve, sim, investigar os outros poderes”, diz Casagrande.

Apesar do ceticismo, ele reconhece que “talvez a CPI da Lava Toga ajudasse o CNJ a se redescobrir”. “O CNJ funcionando poderia criar um ambiente melhor para o Brasil. É um Poder que precisa estar sob esse tipo de escrutínio. O Executivo se renova a cada quatro anos. O Legislativo também se renova, tem mecanismos de renovação. O Judiciário, não. O Judiciário se renova com a morte do desembargador, com a aposentadoria. É um poder que não se renova, não está sujeito a ares novos”, afirma o jurista.

Segundo Casagrande, não basta, no entanto, dar ao Judiciário um choque de moralidade. É preciso, também, aumentar a eficiência. “Tem que mudar a filosofia. Tem que haver eficiência. A falta de eficiência vem junto com a corrupção”, diz. Para ele, a morosidade, a burocracia e a falta de transparência favorecem o comportamento escuso de juízes corruptos.

Eliana Calmon também é cética em relação à CPI da Lava Toga para solucionar o problema da corrupção entre juízes. “Não vai conseguir [instaurar a CPI], porque o próprio Senado tem dificuldade em aceitar. E por quê? Ora, quantos senadores estão nas mãos do Supremo Tribunal Federal? Eles têm processos que não estão sendo julgados, que estão na gaveta.”

Sobre a corrupção na própria cúpula do Judiciário – o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF –, a magistrada evita suposições, mas critica a falta de transparência. “Há apenas suspeitas. Existem comportamentos dentro da cúpula do Poder Judiciário que não têm explicação. Mas prova provada ninguém tem. E por que não tem? Porque eles não deixam investigar. Não há investigação contra ministros do STJ, do Supremo… A Polícia Federal já tentou abrir, e eles trancam antes de qualquer investigação que possa ser feita. Ou seja, existem suspeitas, a Polícia aponta indícios, o Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras] aponta indícios. Esses indícios são apenas retalhos de prova, mas a comprovação nunca virá, porque é o próprio Supremo que dá a autorização para investigar. Eles trancam todos os inquéritos, todas as tentativas de abertura de uma investigação contra ministros de tribunais superiores”, diz Eliana Calmon.

Ela ainda critica a falta de apoio da opinião pública no momento atual. A ex-magistrada afirma que, em sua época como corregedora do CNJ, o apoio da imprensa, do povo e até de setores da classe política foi importante para vencer a pressão interna da Justiça contra o combate à corrupção. “A cidadania já não aguentava mais os desmandos dentro do Poder Judiciário. Tudo isso me favoreceu muito. Eu sofri, internamente, um grande desgaste por parte dos meus pares. Só não fui às cordas porque tive esse apoio da imprensa, do Ministério Público e do próprio poder político. O Senado me apoiou muito. Eu só não caí por causa disso.”

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