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A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que planeja mobilizar o poder público para combater o infanticídio indígena.
A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que planeja mobilizar o poder público para combater o infanticídio indígena.| Foto: Fotos Públicas

A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, tem sinalizado com frequência que pretende agir contra o infanticídio em tribos indígenas – a prática tradicional de determinadas tribos de índios de enterrar vivos recém-nascidos, principalmente quando eles têm algum problema físico.

O assunto motivou uma reportagem do site HuffPost, publicada no último dia 15, na qual foram entrevistados deputados federais da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas. Alguns deles se posicionaram contra a intenção da ministra, classificando seu plano como preconceituoso.

"Ou eles beberam, ou fumaram muita maconha ou enlouqueceram", afirma Damares Alves. "Eu não admito que uma pessoa que se diz parlamentar, que jura defender a Constituição – e lá na Constituição diz que a vida é um bem a ser tutelado pelo estado –, venha defender a morte de criança."

Na reportagem do HuffPost, o deputado David Miranda (Psol-RJ) disse que as falas de Damares eram uma “verborragia racista”. A deputada Maria do Rosário (PT-RS) afirmou que o discurso da ministra era “genocida e colonizador”. Nenhum dos dois respondeu aos pedidos de entrevista da Gazeta do Povo sobre o tema.

Outro deputado mencionado pela matéria, Júlio Delgado (PSB-MG), esclareceu à Gazeta do Povo que abomina “qualquer tipo de violência contra crianças e jovens, seja qual for a origem delas e o motivo”. “Sou pai, tio, e jamais aprovaria algo nesse sentido”, afirmou.

Para ele, antes de “fazer acusações ou julgamentos, é preciso conhecer as características específicas de cada povo”. “Não podemos demonizar todas as comunidades tendo como base as exceções. O que não quer dizer, novamente, que concordo com tais práticas”, disse.

Toda a polêmica começou a partir de declarações em que Damares não explica o plano de seu ministério para combater o infanticídio. O que, exatamente, a ministra propõe?

O plano do governo contra o infanticídio

Para combater a prática, o MMFDH quer atuar em duas frentes: a longo prazo, por meio do diálogo com os povos indígenas; a curto prazo, na melhora do socorro a vítimas.

A tônica do discurso é que é preciso respeitar a cultura dos índios sem deixar de salvar as crianças. O ministério entende que, embora a transformação de mentalidade nas aldeias só se possa dar a longo prazo, não se podem ignorar os infanticídios que já estão ocorrendo.

Em 2015, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 1057/07, que prevê uma série de medidas para combater o infanticídio e outros atentados contra a vida em comunidades indígenas. Para entrar em vigor, o projeto ainda precisa ser aprovado pelo Senado.

Enquanto a lei não é sancionada, Damares quer que seu ministério atue para combater a prática com base no que a própria Constituição prevê sobre o direito à vida. Ela explica que a importância de se sancionar a lei é garantir que o combate ao infanticídio indígena se perpetue em outros governos, mas que, desde já, o poder público pode ajudar a evitar novos infanticídios.

Sob o ponto de vista cultural, a ministra vê a necessidade de diálogo com os povos indígenas e de campanhas de conscientização. “Buscar conversar com os povos, sem fazer interferência cultural. Eu acredito que esse é um problema que o próprio povo pode superar. Muitos povos no Brasil cometiam o infanticídio e já superaram essa prática. É possível que, em conversas, em campanhas, a gente consiga superar essa prática em poucos anos no Brasil”, diz Damares.

Sob o ponto de vista das ocorrências pontuais, segundo a ministra, o MMFDH atuaria recebendo as denúncias, por meio da secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, e buscando mecanismos para salvar as crianças em parceria com Funai (Fundação Nacional do Índio), Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), Ministério Público e conselhos tutelares.

“Depois, conversaremos com o próprio povo sobre a reinserção da criança na comunidade. Se outra família da própria comunidade não quer ficar com a criança, procuramos uma cultura similar, um povo parecido com o dessa criança. Se não encontrarmos outro povo para essa criança ficar, buscamos um abrigo institucional.”

A ministra também prevê a formação de agentes de saúde para um socorro mais ágil a vítimas. “Já estamos conversando com a Funai e a Sesai”, diz.

Ministério de Damares tem fortes vínculos pessoais com o tema

O tema do infanticídio é central na biografia de membros importantes do MMFDH, como a própria Damares e a secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Sandra Terena.

A ministra é fundadora da ONG Atini, especializada na questão do infanticídio de crianças indígenas. Segundo o site da ONG, que foi criada em 2006, seu objetivo é “dar voz aos indígenas que não concordam com a prática do infanticídio em suas comunidades de origem”.

A secretária Sandra Terena, por sua vez, é autora do documentário “Quebrando o Silêncio” (2009), que denuncia práticas infanticidas de diversas aldeias. Terena é uma jornalista indígena que saiu da aldeia aos 13 anos para morar em Curitiba. Conheceu a ministra justamente por conta do ativismo de ambas contra o infanticídio.

Dois indígenas que escaparam do infanticídio estão hoje vinculados à secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.

Um deles é Yarrina Kakatsa Kamaiurá, colaborador do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Seu pai não o reconhecia como filho legítimo e queria enterrá-lo vivo por ele ser fruto de adultério. Kakatsa foi retirado da aldeia antes de o crime ser praticado.

A outra é Kanhu Raka Kamayurá, assistente técnica do departamento de Igualdade Racial. Ela tem distrofia muscular progressiva, doença que só começou a ser constatada quando ela tinha quatro anos. As lideranças de sua aldeia de origem, no Mato Grosso, queriam que a menina fosse morta, e ela chegou a ficar reclusa em um cativeiro antes de ser resgatada pela ONG Atini, com a ajuda de seus pais.

Por se tratar de um assunto relacionado aos direitos humanos com forte repercussão na biografia de membros do ministério, já se esperava que ele fosse vir à tona em algum momento. Nas últimas semanas, Terena tem feito reuniões com outras secretarias do governo para montar a estratégia de enfrentamento à prática.

“Posso garantir que é uma preocupação muito grande desse governo. Temos uma preocupação grande quanto à valorização da vida, e as crianças indígenas não podem ser ignoradas pelo fato de nascerem indígenas e estarem na aldeia. Não é porque a criança está na aldeia que o choro dela tem que ser abafado pela terra. A gente não pode se omitir”, diz ela.

“Estão falando por nós”, afirma Sandra Terena

Para fazer o documentário, Terena visitou diversas aldeias. Segundo ela, muitos dos infanticídios poderiam ser evitados com a ajuda do poder público, e os próprios índios gostariam de receber esse suporte.

“Ouvi relatos de mães, de familiares. Muitas pessoas fazem isso por uma questão de desespero, porque não tiveram oportunidade e não tiveram o apoio do governo. Se uma família pede socorro, é obrigação do governo prover meios para que ela tenha o direito de manter a criança viva. É um tema que me toca muito.”

Segundo Terena, as declarações dos deputados sobre os planos de Damares para combater o infanticídio refletem uma presunção deles em relação ao tema.

“Muitas pessoas querem falar pelos indígenas. Aí, quando você vai conversar com o pessoal da comunidade, eles dizem: ‘não sou eu que estou falando, estão falando por nós’. Vejo isso entre os indígenas, entre meus parentes. Estão falando por nós.”

O relativismo cultural, segundo a secretária, não encontra eco na realidade das aldeias. “Independentemente de etnia, raça, cor, o ser humano é ser humano em qualquer lugar. Mãe é mãe em qualquer lugar. Uma mãe que acaba fazendo isso [o infanticídio], porque tem uma pressão social, fica desesperada. Não é possível que ela faça isso e continue a vida dela da mesma forma que era antes, que não tenha um trauma. Tem mulheres nas aldeias que são histéricas porque cometeram infanticídio. Como que a gente vai dizer que isso é da cultura?”

Terena conta que fez o documentário “Quebrando o Silêncio” de forma voluntária, quando ainda era jornalista. “Sou indígena, sou jornalista, sou mãe e tinha informação. Não podia guardar aquilo só para mim.”

Uma das histórias que mais comoveram a secretária durante a realização do documentário foi a de uma mãe que teve um de seus filhos gêmeos enterrado vivo. “As lideranças da aldeia entenderam que um dos gêmeos tinha que ser sacrificado, porque comprometeria o bem-estar coletivo da aldeia”, conta.

No filme, o pai que perdeu o filho, Paltu Kamayurá, relata o arrependimento dele e de sua mulher por não terem agido para impedir o assassinato: “Até hoje não esqueço. Porque estou vendo o menino [o filho que ficou vivo], o crescimento dele. E aí penso no outro.”

Motivações do infanticídio

Os infanticídios em certas tribos indígenas são geralmente praticados em razão de crenças supersticiosas ou do desejo de manifestar repúdio a atos considerados imorais.

Algumas condições genéticas podem ser motivo para o infanticídio. Crianças que nascem com deficiência física ou mental, por exemplo, costumam ser assassinadas em algumas aldeias. Quando uma mãe tem filhos gêmeos, é comum que um deles seja morto com a ideia de evitar um mal à comunidade.

Crianças que são frutos de relações consideradas imorais, como as nascidas de relações extraconjugais, também podem ser vítimas de infanticídio. Além disso, em algumas tribos, mães solteiras têm seus filhos assassinados e sofrem punições.

As crianças podem ser enterradas vivas, sofrer envenenamento ou simplesmente ser abandonadas. O infanticídio pode ser praticado tanto por decisão própria da mãe ou do pai como por pressão externa – por ordem de um cacique, por exemplo.

“Interesses escusos” impedem mudanças culturais, diz secretária

Para Terena, os “interesses escusos” de alguns indigenistas e de certas lideranças indígenas acaba bloqueando à força o desenvolvimento de aldeias. "Isso gera um impacto absurdo. Tem aldeias que não têm nada, e as pessoas que estão ali que têm certa influência, e têm seus interesses escusos, dizem que eles têm que viver daquele jeito porque é assim que tem que ser, para manter a cultura.”

O bloqueio a qualquer influência externa acaba afetando aspectos muito concretos do dia a dia. “Tente se colocar no lugar do indígena. Você sabe que existe tecnologia, você sabe que existe, por exemplo, até um balde, que para você pode ser útil, e te privam disso, do pouco para você viver. É quase um confinamento. É muito sério, é muito chocante.”

Terena considera que “a cultura é dinâmica, a cultura muda”, e que o confinamento cultural promovido por algumas lideranças acaba prejudicando esse dinamismo. Em relação ao infanticídio, segundo ela, a influência externa poderia ajudar a criar hábitos mais positivos.

“Meu filme foi muito exibido em algumas aldeias. Algumas pessoas, depois que assistiram a filmes sobre a temática do infanticídio, entenderam que poderiam resgatar as crianças”, conta ela.

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