Ao enviar o projeto de privatização da Eletrobras ao Congresso, o governo elencou uma série de motivos para defender a venda da estatal de energia, que será transformada em uma empresa privada de capital pulverizado (sem acionista controlador). O principal deles é atrair bilhões de reais para o caixa da empresa e recuperar a sua capacidade de investimento ao longo do tempo.
“O objetivo desta política é obter novos recursos para a Eletrobras para que a empresa possa continuar contribuindo para a expansão sustentável do setor elétrico, em novos empreendimentos de geração e de transmissão de energia elétrica”, afirmou o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque. “É evidente que a situação econômico-financeira da Eletrobras restringe sua atuação na expansão da oferta de geração e transmissão de energia elétrica, diminuindo a sua capacidade de competir no mercado”, completa.
Segundo dados do ministério de Minas e Energia (MME), a Eletrobras tem capacidade para investir R$ 3,6 bilhões por ano entre 2019 e 2023, enquanto a companhia precisaria investir R$ 14 bilhões para conseguir manter uma participação de mercado relevante. O governo lembra que de 2011 a 2015, a média de investimento da companhia foi de R$ 10,2 bilhões por ano.
A principal consequência do baixo investimento é a perda de relevância no mercado. O ministério diz que a Eletrobras tem, desde 2016, apenas 31% de participação de mercado em geração de energia, o equivalente a 50 GW, enquanto em 1990 esse percentual era de 57%. Já em transmissão de energia, o market share da Eletrobras é de 47% atualmente, o equivalente a 65 mil quilômetros quadrados, sendo que já foi de 65% em 2003.
O ministério também estima que, se a Eletrobras continuar sendo uma estatal e mantendo o baixo nível de investimento, em oito anos ela reduzirá ainda mais a sua participação de mercado. Os percentuais, calcula o MME, devem cair dos atuais 31% de geração e 47% de transmissão para 15% e 35% em 2027, respectivamente, os mais baixos da história da companha elétrica.
O governo também diz que a Eletrobras não participa de novos leilões de energia desde 2014, seja por dificuldades financeiras ou por decisão da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o que contribui para a sua perda de relevância de mercado. Somente a finalização de Angra III adicionará nova capacidade instalada à empresa nos próximos anos, desde que se garanta a participação de parceiro privado no projeto.
A Eletrobras, ainda segundo o governo, é a companhia com a maior dívida do setor elétrico. A dívida bruta da estatal é de R$ 55 bilhões.
Motivos para a crise da Eletrobras
O governo atribui alguns motivos para a crise da Eletrobras. Um deles é a edição da Medida Provisória (MP) 579, em 2012, pelo governo Dilma Rousseff, que acelerou a perda de capacidade de investimento da empresa. E os outros, que aconteceram de 2012 a 2019, incluem a geração de caixa insuficiente, dificuldades de gestão de pessoal e a não participação, desde 2014, de nenhum novo leilão de energia.
A MP 579 ficou conhecida no mercado como o 11 de setembro do setor elétrico. Ela criou o regime de cotas para as tarifas das concessões de usinas hidrelétricas renovadas antecipadamente em 2012, obrigando as que aderiram à MP a vender energia por um preço fixo definido pela Aneel, abaixo do praticado no mercado.
Sob pressão do seu acionista controlador – o governo –, a Eletrobras aderiu à MP. O objetivo de Dilma era cumprir uma promessa de campanha e baixar em 20% a energia elétrica para o consumidor. Como a maioria das demais companhias do setor não quis participar, quase todo o esforço necessário para tal redução recaiu sobre a estatal federal.
Só que, diante da crise hídrica e de outros fatores, o custo de produzir e transmitir energia aumentou nos anos seguintes, mas as usinas continuaram obrigadas a vender a preços baixos, acumulando prejuízos.
Dados do governo estimam que 64% da energia no regime de cotas é vendida pela Eletrobras abaixo do custo, comprometendo sua geração de caixa. A estatal acumulou prejuízo de R$ 31 bilhões de 2012 a 2015, os primeiros anos de vigência da MP, e viu seu endividamento aumentar em 130% e seu patrimônio líquido baixar em 45%, na comparação de 2015 com 2010 (antes da MP).
O diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (Ilumina), Roberto D'Araújo, concorda que a MP 579 foi uma política desastrosa, que afetou a capacidade de investimento da Eletrobras. Mas diz que não foi a única, e que essas políticas foram criadas pelos governos para “compensar a falta de vontade do setor privado de investir no setor elétrico”.
As políticas, classificadas como suicidas por D’Araújo, vêm desde os governos de Fernando Henrique Cardoso. São elas, segundo o especialista: ter obrigado a Eletrobras a comprar distribuidoras rejeitadas pelo mercado, pois só geravam prejuízos (a estatal só conseguiu se desfazer delas no ano passado); gerar energia sem contrato e liquidada por valores irrisórios no mercado livre; obrigar a Eletrobras a virar sócia de Sociedades de Propósito Específicos (SPEs); e obrigar a Eletrobras a aderir ao regime de cotas (criado na MP 579) para tentar baixar as tarifas para o consumidor.
“A Eletrobras foi usada com estratégias muito ruins, que geram deficiência financeira. Agora, por quê? Porque do outro lado, o setor privado, não teve a performance que quis ter. No fundo, o setor privado tem sempre a dependência do próprio Estado, via BNDES”, afirma D’Araújo.
E por que o próprio governo não investe na Eletrobras?
Se o problema da Eletrobras é a falta de dinheiro, por que o próprio governo não investe nela? Primeiro, porque a União não tem dinheiro. O governo federal fecha as contas no vermelho desde 2014 e deve continuar assim até 2022. O Orçamento de 2020 reserva apenas R$ 19 bilhões para investimentos, incluindo todas as áreas, o valor mais baixo da história.
O outro motivo, explica o ministro Bento, é que o governo prefere investir em outras áreas e deixar o setor privado capitalizar o setor elétrico. “A proposta de capitalização da Eletrobras é um sinal de que a sociedade prefere destacar recursos para as áreas de saúde, educação e segurança em lugar de alocá-los na capitalização de uma empresa estatal para realizar investimento no segmento de energia elétrica, coisa que já foi provado que o investidor privado, com os incentivos corretos, tem interesse em fazer.”
D’Araújo, do Ilumina, questiona se o mercado privado tem mesmo capacidade de investir no setor elétrico. “Cadê a pujança do setor privado? BNDES emprestou 100 bilhões [de reais] a empresas elétricas nos últimos quatro anos. Eu tenho muitas dúvidas se o setor privado vai ter essa capacidade de investir.”
Só a "descotização" não bastaria?
Outra questão é levantada pelo especialista é que somente com a "descotização" – isto é, a reversão do modelo de cotas implantado em 2012 – já seria possível salvar a Eletrobras da crise financeira. O projeto enviado ao Congresso, que prevê a privatização, também autoriza a mudança nos contratos antigos da estatal, assinados na época da MP 579, que fizeram com que suas hidrelétricas operassem no regime de cotas.
Os contratos passarão para o regime de mercado, que é o mesmo operado pelas companhias privadas de energia elétrica que atuam no Brasil. A transição de um contrato para o outro será feita ao longo de dez anos para evitar impactos substanciais na tarifa de luz para o consumidor final.
"A melhor solução [para a Eletrobras] é a descotização. Precificando [o preço da energia] em torno de 160 reais por MWh (megawatt hora), você recupera totalmente a Eletrobras e ela volta a ter capacidade de investimento. E a subida de tarifa, que é inevitável [na mudança de regime], vai aumentar menos."
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