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Moradores de Melgaço, no Pará: economistas e o próprio governo estudam mudanças nos benefícios sociais.
Moradores de Melgaço, no Pará: economistas e o próprio governo estudam mudanças nos benefícios sociais.| Foto: Tarso Sarraf/AFP

Após idas e vindas, o governo admitiu prorrogar o auxílio emergencial de R$ 600 por mais dois meses. A discussão entre parlamentares e dentro da própria equipe econômica, porém, extrapola o período da pandemia: o ministro da Economia, Paulo Guedes, já fala em repaginar programas sociais. Em paralelo, economistas e parlamentares defendem que chegou a hora de implementar um programa de renda básica no país.

Tendo como pano de fundo as consequências do coronavírus, o debate não envolve somente a ampliação do cobertor de amparo social brasileiro e a redução da desigualdade. A elaboração das propostas compreende, ainda, a criação de um espaço fiscal no orçamento do país, de modo que os gastos com benefícios assistenciais possam ser ampliados sem que as combalidas contas públicas sofram ainda mais.

Um dos economistas envolvidos nesse debate, Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper, alerta que, se não houver um planejamento adequado dos gastos, uma política de renda básica pode ter resultado inverso ao desejado, com aumento da pobreza.

"Me preocupa porque as pessoas ficam desenhando programas que consideram ideais sem olhar quanto vai custar e de onde vir o dinheiro. Isso é a receita certa para você agravar uma crise fiscal que já é muito grave e jogar o país na estagnação por mais uma década, sem crescer e gerando mais pobres", disse o economista em entrevista à Gazeta do Povo.

Nas contas dele, o programa mais amplo que vem sendo discutido, de renda básica universal para todos os cidadãos, custaria mais de R$ 900 bilhões por ano. De acordo com Mendes, mesmo que o governo faça "um esforço grande" para reunir recursos, o montante disponível ficaria em torno de R$ 80 bilhões.

"Primeiro, a gente tem que fazer as contas, ver de onde podemos tirar o dinheiro, encontrar quais são as fontes de financiamento. De preferência, acabando com outros programas que já existem e que não são tão eficientes, para redirecionar o dinheiro, e aí ver qual é o orçamento. Com base nesse orçamento, desenhar qual é o programa de assistência social possível de se fazer", defende Mendes.

Na conversa com a Gazeta do Povo, o economista detalhou os cálculos que fez e explicou o modelo que defende para o sistema de proteção social do país. Leia a íntegra:

Auxílio emergencial

Qual a sua avaliação sobre o programa do auxílio emergencial, o modo como ele foi desenhado e como está sendo executado?

Em primeiro lugar, a gente tem que levar em conta as condições em que ele foi desenhado. O programa teve que ser feito às pressas, em uma situação emergencial, em que não dava tempo de cuidar de detalhes. Seria de se esperar que desse problema. Era melhor pagar logo dando problema do que deixar as pessoas em dificuldade.

Dito isso, há problemas efetivos do programa. Em primeiro lugar, foi definido um valor que é muito alto para o padrão de renda brasileiro. A renda média do trabalho gerada por cada família brasileira – sem contar aposentadoria, benefícios sociais, etc. – é de R$ 3 mil por mês. Isso quer dizer que uma família média, no Brasil, tem capacidade de gerar R$ 3 mil mensais. Uma família tem três pessoas, dois adultos e uma criança. Então, em média, cada adulto gera R$ 1,5 mil por mês. Ao dar R$ 600 para cada um, você está repassando quase 50% da renda que a gente é capaz de gerar com o trabalho. É um valor muito alto, sob todas as condições.

O segundo ponto é que o desenho do programa acabou incluindo muito mais gente do que se esperava e do que era necessário. A ideia era repor a renda de quem é trabalhador informal ou autônomo e ficou sem renda abruptamente. Mas o estado não tem informações, um cadastro, para identificar quem são essas pessoas. Então outras pessoas que não estão registradas como trabalhador formal puderam entrar.

Por exemplo, alguém que nunca esteve no mercado de trabalho, um jovem que nunca trabalhou, filho de classe média ou alta. Ele não está nos registros do governo. Pede o auxílio e recebe. Em alguns casos, dava até pra ver se ele está registrado como dependente de Imposto de Renda de alguém. Mas não houve tempo de fazer esse cruzamento de informação.

Outro exemplo: uma dona de casa que nunca trabalhou. Não há diferença entre ela e um trabalhador informal, em termos de registro. Essas pessoas também puderam entrar. Ou seja, você estava esperando que 30 milhões de pessoas recebessem o benefício e vai chegar a mais de 70 milhões. Isso se torna um custo bastante pesado.

Para você ter uma ideia, o INSS gasta, por mês, R$ 56 bilhões com todos os benefícios da Previdência. Só o auxilio emergencial custa R$ 50 bilhões por mês. No ano passado, a gente estava brigando para aprovar uma reforma da Previdência porque ela não era sustentável. De uma hora para outra, a gente colocou outra Previdência dentro do orçamento.

Obviamente, isso não é sustentável a longo prazo. Foi algo necessário, por uma situação absolutamente atípica, mas tem que ser estancado o mais rápido possível, sob pena de quebrar o governo e gerar uma crise de finanças grande que vai dificultar a retomada do crescimento e, portanto, dificultar a geração de renda para essas pessoas.

Então o senhor não vê possibilidade de continuar com esse programa de alguma outra forma depois da pandemia?

Está sendo aberto um debate sobre formas alternativas de programas de assistência social. Tem proposta para todo gosto. Eu não sou especialista em políticas sociais, mas as pessoas que são especialistas estão propondo desde uma pura e simples ampliação do Bolsa Família – aumentar o número de famílias atendidas e o valor do benefício – até uma renda mínima para todos os brasileiros. Até para mim, para você, para o Eike Batista. Todo mundo receberia uma renda mínima.

Os custos, obviamente, são bastante diferentes. Se você for pagar uma renda mínima para cada um dos brasileiros, vai custar mais de R$ 900 bilhões por ano. Se você for fazer uma ampliação do Bolsa Família pode custar R$ 20 bilhões, R$ 30 bilhões.

O ponto que eu tenho feito neste debate é que, com a situação fiscal delicada que temos, precisamos primeiro garantir os recursos, saber de onde eles virão, fazer as reformas necessárias para que esses recursos estejam disponíveis para, só então, desenhar um programa. Você fazer um programa e aumentar as transferências para os mais pobres, de que forma for, sem ter o dinheiro em mãos para isso, só vai agravar a situação fiscal – que já está muito grave – e jogar a economia em uma estagnação. Vamos ficar mais muitos anos sem crescer e, em vez de atender os pobres, vamos gerar mais pobres.

Primeiro, a gente tem que fazer as contas, ver de onde podemos tirar o dinheiro, encontrar quais são as fontes de financiamento. De preferência, acabando com outros programas que já existem e que não são tão eficientes, para redirecionar o dinheiro, e aí ver qual é o orçamento. Com base nesse orçamento, desenhar qual é o programa de assistência social possível de se fazer.

Renda Básica

Essa ideia de unificar programas parece ser o que o ministro da Economia, Paulo Guedes, está pensando quando fala do Renda Brasil.

Sim, essa não é uma ideia nova. Os especialistas nessa área, há pelo menos vinte anos, já identificaram vários programas que não funcionam bem. Eles já propõem a extinção do abono salarial, do seguro-defeso, do salário-família e de tantos outros programas que, por um motivo ou por outro, não funcionam adequadamente. O dinheiro seria melhor aplicado se fosse colocado em um programa focado nos mais pobres.

Na verdade, você tem dois tipos de problemas diferentes. Há as pessoas muito pobres, que não conseguem gerar renda suficiente para se sustentar e sustentar a sua família. Essas pessoas vão ter que receber um benefício para colocar os filhos na escola, para que a próxima geração tenha mais instrução e instrumentos para se sustentar. Esse é o público típico do Bolsa Família.

Mas há também um outro público, que ficou mais evidente agora na pandemia, que consegue gerar renda. São os informais e os autônomos, que estão muito sujeitos a choques econômicos, a oscilações da economia. Para esse público, você não tem que dar renda. Tem que dar um seguro, alguma coisa que ele possa ter acesso quando a renda dele cair. O trabalhador formal tem o seguro-desemprego, tem o FGTS. O informal não tem nada disso. Então, para esse outro público tem que haver um redesenho desses mecanismos de seguro-desemprego e de poupança para precaução, como é o FGTS, pra incorporar essas pessoas.

É um desenho que precisa ser feito com cuidado, não é simples. Tem uma série de incentivos que têm que ser colocados e bem dosados para que, por um lado, não custe caro demais, e, por outro, dê os incentivos corretos – para não gerar coisas como o que acontece hoje no FGTS, em que a pessoa às vezes força para ser demitida para receber o valor.

Como são dois públicos diferentes, é preciso ter dois programas, ou seja, instrumentos diferentes para atender necessidades diferentes.

O senhor defende o contrário dos programas de renda básica universal, então. De um modo geral, as propostas de renda básica tratam todos como iguais.

Isso. Em geral, tratam como se tivesse que dar dinheiro para todo mundo. E aí sai tudo muito caro.

Então é difícil ter algum programa de renda básica que caiba no orçamento?

Eu fiz algumas contas. Peguei o que as pessoas andam falando aí. Já ouvi falar em proposta de dar meio salário mínimo para toda criança de 0 a 6 anos. Somando isso com o Bolsa Família, vai custar R$ 130 bilhões por ano.

Pelas contas que eu fiz, no máximo, extinguindo programas, benefícios, fazendo um esforço grande para levantar dinheiro vamos conseguir algo em torno de R$ 80 bilhões. Para fazer um programa de R$ 130 bilhões, vai ter que arrumar mais R$ 50 bilhões de algum lugar. É muito caro.

Se você for dar uma renda mínima pra todas as pessoas do Brasil, como eu te falei, vamos gastar mais de R$ 900 bilhões por ano.

Se você for simplesmente tornar o auxílio emergencial permanente, mesmo que você limite o público que receba esse auxílio dos atuais 70 milhões de pessoas pra 50 milhões, ainda assim iríamos gastar R$ 370 bilhões por ano. Quando, na verdade, só conseguimos levantar R$ 80 bilhões. Onde vamos arrumar os outros quase R$ 300 bilhões?

Em geral, são cifras muito elevadas. Me preocupa porque as pessoas ficam desenhando programas que consideram ideais sem olhar quanto vai custar e de onde vir o dinheiro. Isso é a receita certa para você agravar uma crise fiscal que já é muito grave e jogar o país na estagnação por mais uma década, sem crescer e gerando mais pobres.

Outras reformas

O país tem outros problemas que contribuem para o aumento da desigualdade, como por exemplo o sistema tributário. O seu argumento, então, é que é preciso fazer essas outras reformas antes de implementar um programa de renda básica.

Sim, e há uma série de outras necessidades que vão requerer dinheiro e que serão importantes para fazer o país crescer e reduzir a pobreza. Se colocar todo o dinheiro em um programa de renda mínima, não vai ter para investir em infraestrutura, em saneamento básico, para aumentar as despesas com saúde – o que vai ser necessário por conta do envelhecimento da população.

Ficar olhando para um objetivo só, esquecer todos os outros e achar que vai ter dinheiro magicamente para fazer isso não me parece uma coisa razoável.

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