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O contrato é a adequação “jurídica” de um acordo, de um pacto, de um trato realizado entre duas ou mais pessoas. Em geral, com o contrato objetiva-se “regular” prestações: pagar, entregar, prestar um serviço, devolver algo, etc.

Os negociantes desenham operações econômicas (vender, transportar, fazer corretagem...) e, com o contrato, elaboram a “vestimenta jurídica” para essas operações. Para os juristas, por sua vez, o contrato será a base de raciocínio nos casos em que um juiz ou um árbitro, diante de um litígio, tiver de decidir e superar uma desinteligência nessas relações.

No arranjo entre o que é econômico (a operação) e o que é jurídico (os efeitos ou as consequências para o Direito), a maior parte dos contratos procura unir pontas entre o passado, o presente e o futuro.

Com exceção aos chamados “contratos por adesão”, nos quais prevalece o “pegar ou largar”, com o negociante convidado a assinar (aderir) um modelo contratual predisposto, o caminho do contrato usualmente percorre esses três marcos temporais.

No passado, ficam as negociações: o diálogo, a troca de mensagens, os propósitos. Por vezes, o pretérito guarda o “algo a menos” do que se quis, porém foi aceito para viabilizar a conclusão do contrato, o “algo a mais” do que se esperava, e se obteve no curso do diálogo negocial, e tudo mais que sustentou a decisão, ao final, de contratar.

No presente, os negociantes deparam-se com o contrato: uma obra sempre imperfeita. Com alguma luz, é possível nele enxergar as marcas de várias insuficiências; algumas originadas em “reservas”, nos silêncios assumidos; outras decorrentes da desproporção de “poder” de negociação somada à decisão de assumir riscos e, não raras vezes, verificam-se defeitos que são frutos da invariável dificuldade de se prever o futuro.

Em geral, contrata-se hoje para se cumprir no futuro, depois de dias, meses, por vezes anos... E se o futuro se mostrar diferente daquilo que foi contratado? Seria possível mudar o conteúdo de um contrato, aquilo que se deve cumprir, com a justificativa de que o futuro, quando se fez presente, mostrou-se muito diferente das circunstâncias que justificaram a negociação no passado?

O especialista em direito dos contratos deve ser um expert em manejar essas pontas, entre o passado (a negociação), o momento do contrato (a celebração do pacto) e o futuro, quando as consequências do contrato estarão postas à mesa.

O advento da Covid-19 tornou essa expertise valiosa. Uma pandemia, tal como a presentemente vivenciada, inevitavelmente abalará os contratos e os seus alicerces. É necessário, no entanto, escolher uma solução para as crises que seja compatível com a legislação, a jurisprudência e o entendimento consolidado no direito brasileiro.

Essas soluções, no entanto, não se aplicam uniformemente. Nem todos os contratos foram ou serão afetados da mesma maneira. Basta o leitor imaginar que tanto o fornecimento de serviços de internet como a locação de lojas em shopping center operam por contratos e, intuitivamente, pode-se concluir que as consequências dessa pandemia se mostram sensivelmente diferentes nesses dois exemplos contratuais.

As respostas que o Direito dispõe para o abalo superveniente ao contrato também são diversas. Por vezes, pode-se congelar o dever de cumprir o que foi contratado e se preservar das multas que seriam aplicáveis, mantendo o contrato; outras tantas situações serão solucionadas com o desfazimento do contrato, por vezes, poderá ocorrer a revisão contratual.

Mas o que é a revisão contratual?

Pela revisão contratual, alguém diferente dos próprios contratantes é chamado a alterá-lo no meio do percurso do seu cumprimento. Esse alguém pode ser um juiz (em demandas judiciais) ou um árbitro (em demandas arbitrais). Em ambos os casos, será um terceiro dotado de um poder de impor aos contratantes algo diferente do que, no passado, esses mesmos contratantes escolheram.

Trata-se de um poder extraordinário que, se mal utilizado, terá consequências nefastas para os contratantes e para toda a sociedade, considerando a confiabilidade que se espera dos pactos.

A revisão dos contratos não é um remédio de uso indiscriminado. Pelo contrário. Há diversas outras vias possíveis e menos traumáticas que podem e devem ser manejadas pelos juristas para os casos de crise nos contratos. O uso imoderado da revisão contratual pode gerar consequências negativas para toda a sociedade, ao afetar a confiabilidade e a segurança dos negócios jurídicos.

Na entrevista ao programa “Impactos jurídicos da Covid-19”, o Professor Otavio Luiz Rodrigues Jr (USP), que foi um dos elaboradores do Projeto de Lei 1179/20, enfrenta o tema da revisão dos contratos de direito privado desestabilizados pela pandemia. Esse projeto de Lei aguarda, para os próximos dias, a sanção presidencial.

A linha mestra dessa nova Lei estabelece uma justa medida entre o poder de revisão e a manutenção da estabilidade, da previsibilidade e da confiança nos contratos.

Para os contratos de Direito Civil e de Direito Empresarial, a principal chave para abrir a revisão contratual será o caráter extraordinário e imprevisível que porventura se impôs, com a ressalva, colhida da experiência de algumas décadas nos tribunais brasileiros, de que não se considera imprevisível “o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário” (cite-se, em especial, os arts. 317 e 478 do Código Civil).

Ao passo que a pandemia da Covid-19 é um evento imprevisível, as citadas implicações cambiárias e monetárias são constantes históricas das últimas décadas. Quem viveu o Brasil da década de 1980, da década de 1990 e da passagem aos anos 2000 sabe bem disso.

Há uma experiência e uma prudência haurida na história recente do Brasil que não se confunde com a extraordinária e imprevisível pandemia. O direito brasileiro e, inclusive o Código Civil de 2002, forjado ao ferro e ao fogo das crises econômicas das últimas décadas, indica caminhos seguros e desautoriza aventuras.

Nos contratos regidos pelo Código de Defesa do Consumidor, a revisão dos contratos tem cabimento diante de eventos extraordinários que tornem a prestação excessivamente onerosa ao consumidor. Nesses casos, afasta-se qualquer raciocínio de imprevisibilidade (a esse respeito, mencione-se o art. 6., V, do Código de Defesa do Consumidor).

Para as locações, por sua vez, a revisão dos alugueres deve observar os parâmetros de mercado, com especial ressalva para a locação em shopping center, que segue parâmetros próprios e atentos às particularidades desses empreendimentos (sobre o tema, verificar o art. 19 da Lei de Locações).

Essas são as principais linhas para a revisão contratual que se encontram adequadamente expostas no Projeto de Lei 1179/20 que, com a sanção presidencial, disciplinará o regime jurídico transitório em temas de direito privado (contratos, família, empresa, sucessões, entre outros).

Em breve, no espaço “Impactos jurídicos da Covid-19”, abordaremos os contratos prestação de serviços educacionais. Nessa oportunidade, a Professora Luciana Pedroso Xavier, da Universidade Federal do Paraná, será a nossa entrevistada.

*Rodrigo Xavier Leonardo, advogado, professor de Direito Civil na UFPR, mestre e doutor pela USP.

Veja também: Uma nova Lei para tratar da pandemia? As locações e os serviços de delivery

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