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Papa Francisco acena de dentro do papamóvel.
Papa Francisco: Sínodo está agendado desde 2017, muito antes da eleição de Bolsonaro e da polêmica envolvendo as queimadas na Amazônia.| Foto: Marco Longari/AFP

O governo federal está preocupado com o Sínodo da Amazônia, a reunião de bispos convocada pelo Papa Francisco para discutir a evangelização dos povos amazônicos, marcada para outubro em Roma. O principal temor é que as conclusões do Sínodo se tornem um pretexto para a disseminação de ideias que ameacem a soberania nacional sobre a região.

"Tem muita influência política lá, sim", disse o presidente Jair Bolsonaro a jornalistas, no último sábado (31), sobre o encontro. "Estamos preocupados com as resoluções do Sínodo, que poderão levar a uma interferência [na soberania nacional]", afirmou o general Eduardo Villas Bôas, assessor do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo publicada na última segunda-feira (2).

Membros do governo creem que os bispos brasileiros que participarão das reuniões no Vaticano têm viés esquerdista. Em 2018, Bolsonaro disse que a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) integra "a parte podre da Igreja Católica". Por outro lado, em maio deste ano, ele reuniu-se com o presidente da CNBB, dom Walmor Azevedo, em um encontro que o clérigo considerou "amigável".

De acordo com o padre João Paulo Dantas, que atua na Amazônia, na diocese de Belém (PA), e é assessor para a Comissão de Doutrina da Fé da CNBB, há evidências claras de que a internacionalização da Amazônia não está no horizonte do Sínodo.

"Há 403 anos a Igreja está na Amazônia. Ao longo dessa história, nunca foi aliada ou instrumento de qualquer tipo de movimento que ameaçasse a soberania do Brasil ou de qualquer outro país da Amazônia", afirma Dantas. "E é importante lembrar que a ideia do Sínodo nasceu bem antes do atual governo e dessas atuais pressões internacionais, que são coisas do cenário recente. A ideia do Sínodo já está sendo amadurecida há três anos. Não faz parte do horizonte do Sínodo refletir sobre a internacionalização da Amazônia."

O que dizem os documentos da Igreja sobre a internacionalização da Amazônia

Os documentos e pronunciamentos de bispos sobre o Sínodo da Amazônia publicados até agora e a encíclica Laudato Si', precursora dos temas discutidos pelo Sínodo, não recomendam a interferência de organismos internacionais na Amazônia nem apresentam viés político. Pelo contrário, combatem explicitamente possíveis ameaças à soberania de países sobre o território amazônico.

O temor de que as discussões da Igreja sobre a Amazônia possam servir para facilitar a influência estrangeira sobre a região já foi abordado pelo próprio Papa Francisco em 2015, na encíclica Laudato Si'.

Segundo o Papa, quando se fala em problemas ambientais de lugares como a Amazônia, "impõe-se um delicado equilíbrio, porque não é possível ignorar também os enormes interesses econômicos internacionais que, a pretexto de cuidar deles, podem atentar contra as soberanias nacionais".

Além disso, a CNBB já respondeu diretamente aos temores do governo federal. Depois do Encontro de Estudo do Instrumento de Trabalho do Sínodo da Amazônia, realizado entre 28 e 30 de agosto em Belém, os participantes afirmaram em uma carta: "Defendemos vigorosamente a Amazônia, que abrange quase 60% do nosso Brasil. A soberania brasileira sobre essa parte da Amazônia é para nós inquestionável".

O cardeal dom Cláudio Hummes também já respondeu a "certos temores, até do Estado, da política brasileira e dos outros países" em relação à soberania sobre a Amazônia. "A Igreja não está querendo de forma nenhuma promover ali uma nova nação, um novo país", disse Hummes.

O que é o Sínodo da Amazônia

Em 1965, o Papa Paulo VI criou uma instituição permanente dentro da Igreja, o Sínodo dos Bispos, para favorecer o intercâmbio de informação e experiências entre os bispos e o Papa.

Em outubro de 2017, o Papa Francisco convocou uma reunião do Sínodo dos Bispos para tratar especificamente da região amazônica. De 6 a 27 de outubro de 2019, a Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-Amazônica se reunirá em Roma para discutir os pontos apresentados no Instrumentum Laboris, um documento publicado em junho deste ano que apoiará o trabalho do sínodo.

Qual é o foco do encontro de bispos

Apesar da preocupação do governo em relação à soberania nacional e à discussão de pautas relacionadas ao meio ambiente, o Vaticano e os bispos têm sido claros em relação ao foco do Sínodo da Amazônia.

Ao convocar a assembleia, o Papa Francisco disse que seu objetivo principal é "identificar novos caminhos para a evangelização daquela porção do povo de Deus, especialmente dos indígenas, frequentemente esquecidos e sem perspectivas de um futuro sereno". Ou seja, pensar sobre novas formas de cristianizar os povos amazônicos é o foco do Sínodo.

O cardeal brasileiro dom Odilo Scherer reforçou essa mensagem em artigo recente, afirmando que "seria um equívoco pensar que o Sínodo da Amazônia vai tratar somente de questões ambientais". Ele destacou que "o documento preparatório já amplia o horizonte, incluindo o ser humano na preocupação ambiental".

Em todos os documentos que precedem a realização do Sínodo, a discussão sobre a evangelização dos povos amazônicos é apresentada como o grande objetivo das reuniões, ainda que os problemas ambientais também estejam no panorama das discussões.

Por que fazer o Sínodo da Amazônia agora

A realização do sínodo vai coincidir com um momento em que a Amazônia é foco de controvérsias internacionais. Contudo, o encontro dos bispos já estava marcado para esta data desde 2017. Desde o início de seu pontificado, o Papa Francisco demonstra preocupação com a negligência em relação aos povos amazônicos.

Sob uma perspectiva católica, a eleição de um papa sul-americano pode ser considerada um sinal de Deus para que se dê uma atenção especial a povos marginalizados da América do Sul. Tendo isso em conta, Francisco pode ter enxergado desde o início de seu pontificado a necessidade de cuidar melhor "daquela porção do povo de Deus", para usar suas próprias palavras.

O padre João Paulo Dantas, que atua na diocese de Belém, relata alguns desafios da Igreja na Amazônia que deixam clara a necessidade de uma atenção especial à região.

"Temos paróquias que são tão grandes que, para um pároco ir de um lado a outro da paróquia, precisa de mais de um dia, indo de barco. Temos dioceses maiores do que países. Basta pensar na diocese que é o estado de Roraima, na do Amapá, e em outras dioceses gigantes que temos, por exemplo, no Amazonas e no Pará, que poderiam ser divididas em cinco, seis, sete dioceses, e que têm poucos padres, poucas paróquias, poucos religiosos."

Além das grandes distâncias, outra dificuldade é a variedade de culturas. "Há dioceses em que temos várias tribos indígenas, como em Roraima. Há os povos ribeirinhos, os caboclos... Há as cidades, grandes cidades, que são como todas as grandes cidades do Brasil, com tráfico de drogas, com a pobreza da periferia."

Segundo Dantas, por todos esses motivos, é preciso repensar a evangelização na Amazônia. "Esse é o grande objetivo do Sínodo. E, sendo a Amazônia essa floresta tão importante para o mundo, também se fala da ecologia integral, um tema caro ao Papa."

O que é "ecologia integral" de que fala o Papa

Para compreender a preocupação do Papa Francisco com as questões ambientais, com a Amazônia e como isso se concilia com o seu foco principal – cristianizar o mundo –, é imprescindível entender seu conceito de "ecologia integral", explicado na encíclica Laudato Si'.

Grosso modo, o conceito chama a atenção para o fato de que, sendo o mundo, segundo a Bíblia, uma criação de Deus em que o homem é chamado a colaborar, é lógico e inevitável que todas as realidades criadas estejam essencialmente conectadas. Numa ecologia integral, o meio ambiente, a cultura, a economia, a vida cotidiana e o bem comum são realidades interligadas e inseparáveis.

Uma das consequências da ecologia integral é reconciliar a preocupação pela natureza com outras dimensões da vida humana. Com isso, segundo a encíclica, evita-se "considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida".

"A falta de preocupação por medir os danos à natureza (...) é apenas o reflexo evidente do desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza traz inscrita nas suas próprias estruturas. Quando (...) não se reconhece a importância dum pobre, dum embrião humano, duma pessoa com deficiência (...), dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza", diz o Papa. "Se o ser humano se declara autônomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência, porque 'em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza'."

Com a proposta da ecologia integral, Francisco ecoa seus dois antecessores no Vaticano. O Papa João Paulo II disse, em 1990, que a sociedade "não encontrará solução para o problema ecológico, se não revir seriamente o seu estilo de vida" e que "a gravidade da situação ecológica revela quanto é profunda a crise moral do homem".

O Papa Bento XVI falou em 2009, num discurso no parlamento alemão, sobre uma "ecologia do homem", porque "também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece".

Em 2010, Bento XVI afirmou que "a degradação da natureza está intimamente ligada à cultura que molda a convivência humana, pelo que, quando a 'ecologia do homem' é respeitada dentro da sociedade, beneficia também a ecologia ambiental". Para Bento, "não se pode pedir aos jovens que respeitem o ambiente, se não são ajudados, em família e na sociedade, a respeitar-se a si mesmos: o livro da natureza é único, tanto sobre a vertente do ambiente como sobre a da ética pessoal, familiar e social".

As falas do Papa Francisco sobre o meio ambiente e a realização do Sínodo da Amazônia se inserem, portanto, numa linha de abordagem dos problemas ecológicos que, em certa medida, o Vaticano sustenta há décadas.

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