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Como a mentalidade militar atrapalha a visão econômica: o caso de Bolsonaro e a privatização
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Pense num país em guerra. O controle dos recursos naturais, especialmente os metais para material de combate e os suprimentos alimentares, é fundamental para a vitória. Deixar o inimigo ter acesso a tais recursos seria suicídio.

De fato, uma das primeiras coisas que o lado adversário faz numa guerra é tentar impedir o acesso do outro ao mundo, fechando as rotas comerciais, implodindo pontes e bloqueando os mares.

Todo militar é, portanto, criado nesse tipo de mentalidade. Para o sucesso numa guerra, é crucial a visão maniqueísta de “nós contra eles” e o controle estatal sobre os recursos naturais vitais.

Mas essa visão é mortal para a economia de uma sociedade em tempos normais. Para a economia prosperar, quanto mais abertura comercial, melhor. Quanto mais empresas globais competindo no mercado doméstico, melhor. Livre comércio, globalização, concorrência com multinacionais: eis o caminho do progresso.

Governos autoritários sempre adotaram a linguagem de guerra para justificar seu avanço sobre essa economia livre. Repare nas expressões “guerra contra as drogas”, “guerra contra a pobreza” e por aí vai. É o que justifica suspender as condições normais e impor um regime de controle de cima para baixo, asfixiando a livre iniciativa.

Em casos extremos, como na Segunda Guerra, até dá para entender o abandono dos princípios liberais. Era questão de vida ou morte. Mas viver como se todo momento fosse definitivo como na Grande Guerra é suicídio econômico. Quem acha que a guerra traz prosperidade não entendeu direito economia, não sabe “aquilo que não se vê”, como alertava Bastiat.

Mas é exatamente a mentalidade típica da esquerda, que desconfia do livre mercado e defende mais estado sempre, e também a de muito militar, justamente porque aprendeu a enxergar o mundo pela lente de guerras. É por isso que tanto socialistas como militares gostam de falar em “setor estratégico” e controle estatal, ou confundir recursos naturais como riquezas efetivas.

O deputado Jair Bolsonaro, em pré-campanha a presidente pelo país (e em alguns casos com dinheiro público, o que é imoral e inaceitável), fez um discurso sobre privatização recentemente, que postou com orgulho. Mas nele podemos ver a grande confusão de conceitos, excesso de paranoia, e esse ranço militar antiliberal:

O risco de importar sem muito critério conceitos relevantes para outros países é alto. A Europa pode e deve falar da ameaça islâmica, das fronteiras abertas, do multiculturalismo e do globalismo. Mas achar que o Brasil realmente corre o risco iminente de sofrer uma invasão de muçulmanos que vai sair engravidando nossas mulheres e cortando os clitóris de nossas meninas é um tanto absurdo e paranoico.

Da mesma forma, pode-se compreender a preocupação dos Estados Unidos com o excesso de aquisições chinesas em seu país, ainda que a alternativa não seja impedir tais compras. As empresas continuam em solo americano, sob leis americanas, e sujeitas ao controle militar americano, se for o caso. Mas claro, é compreensível ter apreensão com estatais chinesas comprando, digamos, inúmeros portos e aeroportos americanos.

Daí a achar que corremos um enorme risco se a Eletrobras for parar em mãos chinesas, ou que nossa agricultura, o carro-chefe de nossa economia produtiva, poderá ser rapidamente destruída por chineses vai uma longa distância. Aquela que separa debatedores sérios de populistas que incutem medo nos leigos para conquistar seus votos.

Como tudo que o “mito” fala deve ser aplaudido de pé para muitos de seus seguidores, eles passaram a criticar até mesmo as privatizações, em vez de reconhecer que seu candidato disse besteira sobre o assunto. Vários foram no meu perfil justificar que é “burrice” vender ativos “estratégicos” para chineses ou qualquer empresa estrangeira.

Citaram até a JBS e a Oi como exemplos de que privatizar não basta, ignorando que foi o BNDES, UM BANCO ESTATAL, que permitiu a farra toda. Eu confesso que não escutava falar de “setor estratégico” como argumento contra a privatização desde… o PT!

A comparação com os Estados Unidos e com Trump também tem sido frequente por essa turma, mas é absurda. Primeiro, porque não existe uma PetroUSA, e sim várias empresas americanas e estrangeiras competindo no setor, e o petróleo claramente é estratégico para os americanos. Segundo, porque os Estados Unidos são o “xerife do mundo”, e de fato estão quase sempre sob o risco de guerras. Mesmo assim, possuem uma economia bem mais livre e muito menos controle estatal, mesmo em áreas “estratégicas”.

Alexandre Gonçalves, que me acompanha desde os tempos do falecido Orkut, fez uma provocação em sua página, pedindo respeito aos demais seguidores de Bolsonaro. Claro que não adiantou: fui xingado de burro e canalha, tive minha honestidade intelectual questionada, e tudo porque defendo privatizações e critico quem as critica. Eis o comentário que ele fez:

Essa comparação excessiva entre Bolsonaro e Trump interessa aos seguidores do deputado por motivos óbvios, mas continua sendo absurda. Trump é um empreendedor de sucesso, com negócios bilionários no mundo todo, enquanto Bolsonaro nunca administrou uma lojinha, está em seu sétimo mandato, com os filhos também na política.

Mas mesmo assim mostrei ao colega que não há contradição alguma, pois cheguei a escrever um texto alegando que essa visão nacionalista e mercantilista de Trump era exatamente o seu calcanhar de Aquiles, como concluí:

Não é porque outros governos punem seus consumidores erguendo barreiras que devemos aplaudir quando o nosso governo o faz como “retaliação”. É como o governo atirar no próprio cidadão como resposta ao tiro que o outro governo deu. Numa guerra, o primeiro objetivo é sempre dificultar o acesso do inimigo aos produtos estrangeiros. É lamentável quando o próprio governo faz isso em tempos de paz, em nome dos “interesses nacionais”.

Se Trump deseja recuperar empregos e fazer a América grande novamente, após oito anos de mediocridade do governo Obama, então ele deve reduzir os entraves ao livre mercado, enfrentar os sindicatos, diminuir os gastos públicos. Ou seja, deve seguir a cartilha liberal, não no sentido americano do termo, usurpado pela esquerda, mas no clássico.

Menos Estado, mais liberdade. Eis a receita. O protecionismo não faz parte dela. É o calcanhar de Aquiles de Trump, que tem tudo para resgatar a economia do pântano estatizante atual e colocar esta grande nação na rota do desenvolvimento novamente. Para isso, deve ler menos Keynes, e mais Milton Friedman e Hayek.

É preciso ser coerente. O que não dá é para pregar a privatização a vida toda, inclusive com um livro chamado Privatize Já, e depois fazer vista grossa ou até elogiar as baboseiras ditas por Bolsonaro sobre o assunto porque ele combate os socialistas. Ora, nesse tema específico sua visão parece muito com a dos próprios socialistas! Ciro Gomes também quer controle estatal sobre setores “estratégicos” e também possui uma mentalidade nacionalista, que não pode ser confundida com patriotismo.

Fechar-se numa redoma contra a globalização não é combater o globalismo. Desconfio que muitos ali sequer saibam o que seja globalismo mesmo, e estão atacando a própria globalização, o livre comércio em nível global, que é altamente saudável e desejável. E retirar o estado da economia, acabar com o estado-empresário, é fundamental para reduzir a corrupção e melhorar a eficiência econômica, gerando mais riqueza e empregos.

A Gazeta do Povo, em editorial, aplaudiu a ideia de privatizar a Eletrobras justamente por isso. Por outro lado, Bolsonaro ainda parece obcecado com nióbio e grafeno, deixando transparecer seu ranço militarista. E não foi por falta de tentativa da minha parte em esclarecer tais pontos. Mandei meu curso “Bases da Economia” de presente a ele, e na Aula 7 temos justamente esse tema:

  • A era da especialização
  • Mercantilismo e protecionismo
  • Vantagens comparativas
  • Globalização: corrida para baixo?
  • Balança comercial e de pagamentos
  • O argumento da reciprocidade (Bastiat)

Com certeza, se Bolsonaro tivesse assistido a aula e prestado atenção, ele teria mais chances de compreender o equívoco de sua visão nacionalista e mercantilista. Sei que não é fácil para quem enxerga o mundo como se estivesse numa eterna guerra, mas para quem tem pretensões de comandar o país, é crucial abrir os horizontes e ter mais noção de como funciona a economia.

Fazer tal crítica construtiva não é “jogar contra” ou ajudar a esquerda. Ao contrário: ajudar a esquerda seria ficar calado e deixar que um candidato de direita, com chances reais de vitória, adotasse o mesmo discurso da esquerda quando o assunto é privatização e globalização.

Rodrigo Constantino

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