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A crise na educação brasileira por Hannah Arendt
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Por Jocinei Godoy, publicado pelo Instituto Liberal

O atual estado de coisas no que tange à educação brasileira encontra paralelos no fragmento do livro “Entre o passado e o futuro” da eminente filósofa alemã Hanna Arendt, cujo título é: “A crise na educação”. A crise de sua época, em muitos aspectos, se assemelha ao momento que o nosso país atravessa em seu contexto educacional. Estes paralelos visam demonstrar e explicar a aparente celeuma da nossa educação, bem como a sua ineficiência.

Antes de prosseguir, assim como a filósofa destacou a sua não especializaçãosobre a área da educação, guardadas as devidas proporções, apesar de fazer parte do ambiente educacional formal e auxiliar minha esposa em seu curso de Pedagogia, também destaco a minha não especialização em educação.

Como se sabe o Brasil tem tido maus resultados nas avaliações internacionais de educação dos últimos anos, ficando atrás de países com IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) bem mais baixo que o nosso. A dificuldade dos alunos em sequer chegar ao fim de provas como a do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) revela a precariedade do nosso sistema de ensino. Cerca de 61% dos brasileiros não terminaram a primeira parte da prova. Entre os colombianos, apenas 18% não terminaram[1]. Neste caso, urge respondermos uma importante pergunta: porque o Brasil tem tido resultados educacionais tão ruins? Apesar de a resposta não ser nada fácil procura-se propor neste pequeno ensaio respostas que lancem luz a possíveis soluções. Isto porque a constatação e a correção de eventuais equívocos em relação às politicas públicas de educação da nossa nação são tão urgentes quanto necessárias.

Neste sentido, evidencia-se a importância de uma inquietação por parte da classe intelectual brasileira, assim como a inquietação de Hannah Arendt acerca da crise da educação que assolava os Estados Unidos na década de sessenta. Arendt identificou que a crise de seu tempo se deveu a alguns fatores, dentre os quais, destaco: a) a educação como instrumento de politização; b) a ilusão emergente do pathos do novo; c) o nivelamento e emancipação forçada das crianças; d) o descolamento da pedagogia com o ensino.

Guardadas as devidas diferenças geopolíticas e temporais entre o contexto americano de Arendt e o nosso contexto brasileiro, é possível afirmar que os fatores propostos pela filósofa alemã, que descambaram na crise da educação americana são, em menor ou maior grau, os mesmos que assolam a educação brasileira. O problema que se constata como de grande complexidade e de difícil concatenação, desde a época de Arendt até os dias hodiernos, reside em: até que ponto o ato de ensinar e aprender deve se pautar pela autoridade decorrente da tradição em um mundo que não mais se estrutura por estes valores – autoridade e tradição?

Dito de outro modo, o processo ensino-aprendizagem reside em insistir com uma educação progressista ou, apesar do espírito da época, com uma educação que, por um lado, trate o aluno como aquele que realmente tem o compromisso do aprendizado e, por outro, trate o professor como aquele que realmente tem condições concretas de ensinar baseado na tradição intelectual acumulada?

Os pontos a seguir foram identificados por Arendt. Para efeito didático estes pontos serão brevemente contextualizados com a educação brasileira contemporânea

1. A educação como instrumento de politização.

Não precisamos de muito esforço para compreender que esta estratégia perpetrada pela educação progressista, a exemplo do “célebre” livro: A educação como ato político partidário, cuja elaboração se deve a personagens como Paulo Freire, transformou as universidades, em especial, as Licenciaturas, em laboratórios de formação de militantes político-partidários. A preocupação com a formação de professores que possuam conhecimentos, habilidades e atitudes voltadas ao ensino concreto da disciplina foi relegada a segundo plano, dando lugar ao ideal rousseauniano de despertamento do caráter político de sua atuação em sala de aula. O resultado? Basta dar uma olhada nas áreas de Humanidades das universidades, principalmente, das universidades públicas. Os alunos são estimulados a encarnar este ideal de atuação política mais do que o próprio compromisso de aprendizado efetivo das disciplinas acadêmicas. Isso sem falar da amputação bibliográfica constantemente denunciada por intelectuais engajados na luta contra a ideia de doutrinação em sala de aula. Aliás, esta doutrinação muita clara em nosso país é praticamente a mesma que Arendt denunciava como estratégia dos movimentos revolucionários para levar a cabo suas aspirações em relação às utopias políticas.

2. A ilusão emergente do pathos do novo.

Como dizia Arendt, “cada nova geração cresce no interior de um mundo velho”. A ideia de que o novo é sempre um alvo a ser atingido quanto à educação é uma ilusão que desconsidera todo um arcabouço teórico de técnicas e métodos de ensino efetivos. Apontar para um ideal utópico e, em nome deste ideal, tentar preparar os mais novos para alcançá-lo é o mesmo que castrar-lhes a imaginação e a possibilidade de eles mesmos inovarem. Este é, talvez, o ponto principal da crise educacional brasileira: tentar em nome de um objetivo intátil e inatingível, neutralizar a imaginação dos novos impondo a eles um exercício intelectual que desconsidera importantes antepassados históricos, gigantes que nos legaram uma rica tradição intelectual. As modernas teorias educacionais, ou seja, as teorias progressistas de educação vêm dando frutos podres que se traduzem em péssimos resultados, conforme exposto acima. Quando as regras da razão humana são postas à parte, dando lugar a pragmatismos que visam a um progresso artificial, o fiasco na educação é inevitável. Assim como a crise da educação americana denunciou o fracasso progressista, o mesmo ocorre atualmente em nosso país.

3. O nivelamento e emancipação forçada das crianças.

Na Modernidade houve a preocupação de que as crianças aprendiam de uma forma que não era própria à sua infância, ou seja, que eram impostas formas adultas de ensino-aprendizado. Com isso surgiu uma ideia de que as crianças possuem um mundo próprio, autônomo, descolado do mundo dos adultos. Um efeito colateral desta ideia foi entregar as crianças para que aprendam ao seu modo e, além disso, deixá-las sofrerem em suas individualidades a tirania da maioria (dos seus pares) sem que haja qualquer interferência dos adultos a seu favor. Outro efeito desta ideia de autonomia precoce das crianças foi a sua exposição à luz do mundo público, uma vez que as crianças, assim como uma planta, precisam de momentos de abrigo e obscuridade, no seio da família, para alcançar maturidade. Toda a publicidade e o envolvimento das crianças em situações de total abertura ao mundo público, confundindo-lhe a esfera pública com a privada, atrapalham, sem dúvida, o seu desenvolvimento. A isto soma-se o fato de escolas adotarem cartilhas e ações de erotização precoce sob o pretexto de educação sexual e emancipação cidadã. Como já dizia o sábio Salomão, há tempo para todas as coisas e, quando se trata do desenvolvimento infantil, este dito de sabedoria deve ser levado mais a sério ainda.

4. O descolamento da pedagogia e do ensino.

Como dito acima, minha esposa estuda Pedagogia. Não são novidade para ninguém que estudou ou estuda Pedagogia/Licenciatura nomes como Jean Piaget e Emilia Ferrero, cujas teorias têm sido interpretadas, correta ou equivocadamente, como: “uma espécie de teoria do conhecimento, aplicada à pedagogia, que se centra na autonomia do aluno, a despeito da “irrelevante” participação do professor no processo de ensino-aprendizagem”. Neste caso, quando o professor ensina algo à criança é como se ele impedisse ou interferisse no processo de, ela mesma, inventar e aprender. É a tal da primazia do aprender pelo fazer – do “aprender fazendo”. Para piorar a situação, estas teorias da educação levam o professor a não corrigir o aluno quando erra, uma vez que isso pode “traumatizá-lo”. As consequências deste tipo de ensino foram objeto de um texto do Diário do Comércio escrito pelo filósofo Olavo de Carvalho em 2012[2], disponível ao final deste artigo. Outro problema decorrente deste ponto é o despreparo de professores em suas formações, uma vez que não se aprende sobre aquilo que vai ser ensinado, mas, sobre o modo de ensinar. Assim, o professor acaba em muitos casos sabendo um pouco mais do que o aluno na matéria ensinada (quando não se sabe menos que o aluno). O descolamento da pedagogia do ensino efetivo do aluno se agrava com a politização desenfreada do currículo deste curso. Por exemplo, chega-se a ensinar geografia marxista em cursos de pedagogia. Outrossim, todo o referencial teórico sobre política ou gestão político-pedagógica do curso se alinha à esquerda. Quando o professor recém-formado vai para a sala de aula, é provável que o seu objetivo seja o de contribuir prioritariamente para a “emancipação cidadã” do aluno. Ao fazer isso, se esquece de que o aluno precisa, antes de tudo, aprender a ler, a escrever e a interpretar textos e discursos adequadamente, a fim de que seus posicionamentos críticos não sejam descolados da realidade e vazios de sentido.

O fracasso empiricamente demonstrado da educação progressista é, ao mesmo tempo, notório e tergiversado. Notório porque a nossa má colocação no ranking do PISA está aí à vista de todos. Tergiversado porque o establishment insiste nesta educação fracassada como forma de emancipação humana, quando, na verdade, visa preparar a geração dos novos para o rompimento com as tradições intelectuais de matriz conservadora.

Talvez, a insistência na educação progressista seja até motivada por boas intenções em promover a igualdade. O problema é que, assim como denunciado por Arendt nos EUA do seu tempo, tentativas de promoção de igualdade através da educação geralmente levam a problemas que atingem a esfera privada da vida dos alunos. A igualdade tão sonhada pelos progressistas é artificial e antinatural, pois não leva em consideração uma série de fatores complexos de toda a dimensão humana.

Outro ponto que merece ser destacado refere-se à desproporção nos investimentos governamentais no ensino básico e superior. Em outubro do ano passado, a Gazeta do Povo publicou um estudo feito pela OCDE sobre os discrepantes indicadores de investimento que traduzem uma espécie de abandono da educação infantil e a priorização da educação superior[3]. Parte da matéria diz: “O Brasil é um dos países com menores investimentos em educação básica, mas com gastos semelhantes ao de países europeus no ensino superior. As informações são do estudo ‘Um Olhar sobre a Educação’, publicado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico)”.

A inversão nos investimentos em educação no Brasil equipara-se a um agricultor que investe maciçamente na poda de suas plantas subnutridas a despeito do baixo investimento nas ações de fertilização das mesmas. Quando podadas, ao invés de florescer e dar frutos, elas acabam por secar e morrer. Nossas crianças, ao invés de deixar florescer o seu melhor na faculdade, conduzem seus estudos de forma mediana, quando não de forma leviana, em função do desestímulo que as acompanham desde a educação básica. Será que os baixos investimentos no ensino básico ocorrem porque os alunos desta faixa etária ainda não possuem título de eleitor?

Diante do exposto, uma importante resposta vem sendo dada na tentativa de suprir a demanda por uma verdadeira educação de qualidade. Cada vez mais pessoas estão se voltando à chamada educação clássica. Uma educação que por vários séculos pretendia ensinar integralmente o ser humano a, de fato, ser uma pessoa melhor e verdadeiramente autônoma. As artes liberais como eram chamadas, reunidas no trivium (retórica, gramática e lógica) e no quadrivium (aritmética, geometria, música e astrologia), consistiam em trabalhar a mente humana de forma eficiente, preparando-a para desafios intelectuais maiores.

A conservação da tradição intelectual dos gigantes do passado não se refere a mero saudosismo ou medo do futuro. Não se trata de trazer elementos da educação clássica sem qualquer contextualização. Pelo contrário, conservar aqui significa que, assentados nos ombros de gigantes, prosseguimos seguramente rumo ao novo que se desvela na interação de cada geração com o mundo. Por atender efetivamente a esta demanda, a educação clássica tem sido buscada e altamente disseminada por pessoas, editoras, instituições de ensino, etc.

A educação moderna ou progressista, ao invés de conferir um mundo novo e próprio às crianças, impede ou atrapalha o seu pleno desenvolvimento afetivo, moral e cognitivo. A denúncia deste tipo de educação é escancarada por avaliações de aprendizado como a do recente Exame Nacional do Ensino Médio – Enem 2018, cujas questões possuem exagerado enviesamento político-ideológico de esquerda. O fato de haver o enviesamento não é de todo ruim. A situação se agrava quando este enviesamento requer do aluno avaliado um conhecimento que é exclusivamente minoritário e ineficaz para a sua vida universitária. Exigir do aluno conhecimentos de gênero (questão 31) acerca de verbetes e dialetos exclusivos da ala gay e trans para entrar na vida universitária é, no mínimo, despropositado. Como dizia o professor José Monir Nasser, a educação moderna como educação cidadã é, na verdade, um conjunto de modismos de politicamente correto distribuídos em massa através das escolas. Nasser era um crítico do modelo moderno de educação. Para ele, o que se pensava ser educação era, na verdade, com muito custo, ensino.

A conservação na educação, para Hannah Arendt era fundamental, pois combatia o controle imposto por governos que acreditavam apresentar algo novo e revolucionário às crianças na tentativa de usá-las para mudança da ordem estabelecida. Não há como controlar o novo que nós, os velhos, pretendemos que deva ser. É na conservação e no ensino com autoridade, não com autoritarismo, que a criança poderá fazer a síntese entre o “novo e o velho” com vistas a sua emancipação, além da efetiva contribuição para um mundo mais pacífico, fraterno e justo.

Portanto, resgatar aquilo que veio se perdendo desde o Renascimento, ou seja, ter o professor como o mediador ativo entre o antigo e o novo, dando-lhe ferramentas para fazer um bom trabalho respeitando a tradição, é fator decisivo para uma educação de qualidade [isto só é possível com o “corte na carne” da formação de professores medianos como militantes políticos, o que se constitui como ciclo sem fim na educação]. De outro lado, o aluno deve ser estimulado, levando em conta as nuances da contemporaneidade, a firmar um compromisso consigo mesmo da busca pelo saber que o leve ao descobrimento do mundo como ele é, sem perder os elementos de dignidade que o constituem como pessoa humana.

Para isso, a família como local de acolhimento e proteção, inclusive, contra a intromissão do Estado em questões privadas, tem seu lugar de destaque neste processo educacional. Quando as famílias cumprirem seu papel de proteger e incentivar a criança ao mundo do saber e o Estado cumprir o seu papel como mediador na apresentação deste mundo construído sobre os ombros de gigantes, certamente teremos uma educação que alçará o Brasil a voos maiores e mais duradouros entres os grandes deste tempo.

*O título deste artigo foi adaptado do capítulo 5 do livro “Betwenn Past and Future”, de Hannah Arendt, revisado pela última vez em 1968.

Sobre o autor: Jocinei Godoy é formado em Teologia pelo Seminário Teológico Batista Independente de Campinas-SP; estudante de Filosofia na PUC-Campinas-SP; e Sócio da Evolução Consultoria. 

[1] https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2018/07/alunos-brasileiros-nao-chegam-ao-fim-de-prova-em-avaliacao-mundial.shtml

[2] http://www.olavodecarvalho.org/o-novo-imbecil-coletivo/

[3] https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/ao-priorizar-ensino-superior-brasil-abandona-educacao-infantil-epxmrf7oxlalamf5im2fvzf26/

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