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“Da Monarquia à Oligarquia”: elite, povo e instituições no Brasil
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Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal

O problema das diferentes configurações políticas, da extensão da representação nas sociedades modernas e contemporâneas e da forma por que as instituições organizadas se relacionam com as transformações sociais é perspectiva fundamental para entender como chegamos até aqui e qual a gênese de nossas virtudes e defeitos. A isso se dedica o livro Da Monarquia à Oligarquia: História institucional e pensamento político brasileiro (1822-1930), do cientista político Christian Lynch, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Seu trabalho permite traçar o cenário geral em que se efetuaram as elaborações e lutas dos liberais brasileiros, com os desafios que ofereceu à implementação de suas agendas, além de comparar a trajetória político-intelectual brasileira com as demais nações que são geralmente referência na literatura sobre a história das instituições e correntes políticas modernas. Com uma estrutura diferente da de outros livros que investigam o pensamento brasileiro, a obra de Lynch é marcada pela exposição de minúcias enriquecedoras, dos personagens históricos em ação e de gráficos e informações estatísticas que facultam uma apreensão clara e de difícil contestação dos processos sociais em curso no Brasil entre o Segundo Reinado e a Revolução de 1930. É tudo tão minucioso e indispensável ao interessado no tema que não se pode fazer mais aqui que uma apresentação extremamente sintética de sua proposta.

O livro começa por estabelecer suas premissas teóricas basilares, sendo talvez a principal delas a ideia da representação. Ele a define como “o princípio organizador da política”, relacionando a sociedade ao poder e alicerçando a comunidade política, fazendo uso de aparatos simbólicos para esse fim, permitindo “a um punhado de indivíduos aparentemente efêmeros e desconexos enxergarem-se como um todo coerente de sentido no espaço e no tempo”. A primeira dimensão dessa representação é chamada representação-personificação, em que a autoridade se instala em um plano externo e superior à comunidade, articulando a sua autoconsciência. Em seguida, através da representação-mandato, a sociedade passa a representar-se junto ao poder, enfraquecendo a representação-personificação, sem erodi-la por completo, para instaurar o chamado sistema representativo.

Dentro dessa transição de representação, Lynch inscreve, evidentemente inspirado nas teorias clássicas dos sistemas políticos, com termos encontrados desde Aristóteles, a construção do Estado moderno como uma realização manifestada em três grandes categorias: a monárquica ou autocrática, a aristocrática ou oligárquica e a democrática. Admitindo as diferenças culturais profundas entre os diversos países e que não existe uma receita fatal para todos, ele enxerga nessa classificação um método útil para apreender o processo, inclusive e especialmente, como é este o objetivo, na América Latina. Apreciando casos como o chileno e o argentino em paralelo, seu interesse maior, e também o nosso, reside no caso brasileiro.

Nesse sentido, Lynch expõe a etapa monárquica como aquela em que o governante, em geral após crises e conturbações no território, absorve poderes antes mais ou menos distribuídos. Não importa se a “forma de governo” em si é literalmente republicana ou monárquica – a República do Chile de 1840, por exemplo, é considerada por ele uma monarquia, cabendo perfeitamente na descrição. Em nosso caso, entretanto, após as convulsões regenciais, foi mesmo o imperador D. Pedro II quem, no Segundo Reinado, pela obra de centralização do “Regresso”, com a prevalência dos chamados “conservadores” (“saquaremas”) sobre os “liberais” (“luzias”), protagonizou essa etapa.

A edificação do Estado moderno aqui partiu de um sistema que Lynch descreve detalhadamente, exibindo a sequência dos principais gabinetes ministeriais instalados no poder desde a década de 1840, como um sistema, inspirado na Monarquia de Julho e nos liberais doutrinários franceses, de parlamentarismo tutelado pelo monarca, que interfere incessantemente com seu Poder Moderador para manter a alternância entre os partidos e, ao mesmo tempo, a representação de minorias no sistema político.

As oligarquias já existem, bem como as fraudes eleitorais, mas não apenas ocorrem esforços legítimos para reformar a legislação eleitoral, embora sem muito sucesso, como a participação percentual da sociedade no processo decisório não estava em desarranjo com as tendências observadas em outros países. É oportuno observar que a presença do imperador trazia estabilidade institucional e neutralizava os excessos de arbítrio, censura e violência que caracterizaram o cenário nas Repúblicas vizinhas, permitindo que essa etapa monárquica e seu encaminhamento para a oligárquica se dessem com muito menos atropelos.

O golpe republicano, fazendo vir à tona uma fauna política que se caracterizava por liberais spencerianos (inspirados na obra de Spencer, como Campos Sales), “jacobinos” nacionalistas, positivistas e castilhistas, e, na oposição, liberais que evoluíram para bandeiras mais democráticas, em destaque a figura de Rui Barbosa, resultou em um regime oligárquico propriamente dito, em que até a representação das minorias se tornou mais deficiente e não havia a alternância das correntes e forças políticas.

Isso porque, dispensando a tutela do imperador e amparando-se, não sem atritos, nos recursos da “política dos governadores” (inspirada na República oligárquica argentina) e da “política do café-com-leite” firmada após os desgastes do governo Hermes da Fonseca para tentar conter os choques de ambição entre as oligarquias estaduais mais poderosas, esse regime tinha o apoio de muitas forças egressas do próprio amplo setor agrário do partido conservador monárquico, interessado em ampliar a autonomia orçamentária dos estados e totalmente alheio aos processos de aprofundamento democrático que se davam na Europa ou nos Estados Unidos.

Sem a ação do imperador, até houve quem tentasse atribuir o Poder Moderador ao Supremo Tribunal Federal – há uma nota curiosa que mostra o republicano Salvador de Mendonça afirmando que o próprio D. Pedro II teria tido intenção similar já em 1889 – como forma de garantir a alternância, mas, inclusive a julgar pelos nossos ilustres ministros do STF atuais, receio que não teria sido um caminho muito exitoso…

Todas as tentativas de transformação do sistema foram frustradas por um arranjo de elites estaduais que se apoiavam na degola dos opositores e nos estados de sítio e intervenções federais, intensificados na década de 20 para enfrentar as greves e revoltas tenentistas, e pela presença de juristas e intelectuais de matriz autoritária que também influenciariam o futuro regime ditatorial do Estado Novo – mostrando que esses autores já tinham peso no corpo do regime deposto pela Revolução de 30. Toda essa violência policialesca era praticamente nula no período imperial.

Com um sem-número de revelações muito interessantes – como o percentual surpreendente de Rui Barbosa na eleição de 1919, obtendo mais de 20% dos votos sem o apoio de nenhuma oligarquia, em um regime em que presidentes eram empossados até com mais de 90% de apoio -, Lynch elabora um retrato, um dos mais completos já escritos sobre a República Velha, do esforço de um poderoso núcleo dirigente por resistir até mais não poder ao desenvolvimento de cores verdadeiramente democráticas em sua sociedade fechada e elitista, insistência que levou a uma conclusão disruptiva e autocrática.

O livro demonstra ainda que a tensão na República Velha entre as oligarquias dominantes e as oligarquias preteridas, bem como a classe média emergente, teve influência no vocabulário político brasileiro cotidiano. “Dali por diante, a palavra ‘liberal’ foi apropriada por todos aqueles que pertenciam às minorias alijadas, ao passo que ‘conservadores’ se reconheceriam todos aqueles que, em nome da autoridade e do progresso material, estavam comprometidos com a situação”, diz Christian Lynch. Esse uso, que não tem muito a ver com a forma por que esses termos já eram empregados em outros países e com que liberais e conservadores brasileiros contemporâneos os empregam, certamente influenciou, nas décadas seguintes, o uso udenista e lacerdista de chamar de “conservador” o PSD egresso do getulismo, porque era a “situação”, bem como a ideia de que a chapa de oligarcas e descontentes com a República Velha, tendo por candidato à presidência ninguém menos que o futuro ditador Getúlio Vargas, era chamada de Aliança Liberal (!?).

Uma série de três ensaios publicados na segunda parte do livro desdobra a complexidade do pensamento social brasileiro naquele tempo mediante a apreciação das diferenças entre três grandes posicionamentos, seus encontros e desencontros ao longo do tempo. O primeiro é o pensamento de Joaquim Nabuco, liberal de inspiração britânica que se preocupava com a consolidação de uma autêntica sociedade brasileira, de uma “Nação” com “ene” maiúsculo, que somente se faria com a emancipação dos escravos, sua educação e desenvolvimento, mais do que com os aspectos formais e institucionais. Para ele, curiosamente mais antenado aos desenvolvimentos democráticos europeus e americanos que os republicanos, a monarquia é que era, no sentido clássico, uma “República”, um regime calcado no bem público e capaz do cultivo de certo idealismo prático que não seria possível na República de caudilhos e tormentas que adviria.

O segundo, o de Rui Barbosa, que, ao contrário, concentrado nas mudanças institucionais e formais, crítico veemente do unitarismo do Império, passou a adversário da República oligárquica que ajudou a fundar no trabalho de elaboração constitucional de 1891, passando a ter uma visão mais generosa da monarquia derrubada e pregando em nome de uma República liberal, progressivamente mais democrática, que não viria. Por fim, o terceiro, o pensamento da própria elite dominante da República Velha, caracterizado por profunda “demofobia”, a ponto de se cogitar a transferência da capital para o interior do país a fim de afastar a atividade política do povo. Nesse aspecto, Lynch dedica espaço a duras críticas ao presidente Juscelino Kubitschek, que levou adiante esses argumentos já anos depois da República Velha, e a nomes como o grande liberal José Osvaldo de Meira Penna, que defendeu a mesma posição, para nossa surpresa, infelizmente, com comentários vexatórios como o de que a população carioca era “mestiça, altamente emotiva, num ambiente irritante de estufa” que não seria adequado aos senhores do poder. O final do livro traz uma série de declarações de líderes como Campos Sales e até Pinheiro Machado, a quem recentemente “reconheci” em outro artigo o interesse pelos setores populares (como em seu apoio ao sambista João da Baiana), dando conta de que o menor sinal de manifestação do povo nas ruas seria uma espécie de revolução intolerável.

Felizmente, liberais e conservadores, ou a “direita”, como se queira chamar, hoje estão menos “demofóbicos”. Estivemos nas ruas nas maiores manifestações da História para derrubar a presidente Dilma Rousseff. Essa talvez seja a maior lição prática que podemos aprender com o livro de Lynch: precisamos saber associar nossa defesa da solidez institucional, da prudência, da ordem, do sistema representativo e das liberdades individuais ao respeito, ao mesmo tempo, à mais ampla participação no processo decisório. Sem equilibrar essas preocupações, somos presa fácil de demagogos e autocratas de plantão, hoje como outrora.

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