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Espiritual, mas não religioso: a forma moderna de manter “deus” sem esforço ou sacrifício
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Navegando por pura curiosidade antropológica em sites de relacionamento, acabei tendo algumas reflexões existenciais e sobre a era moderna. Ver senhoras de quase 50 anos publicando imagens adulteradas pelo snapchat como se fossem adolescentes, ou então fazendo poses oferecidas para tentar compensar o reduzido valor de mercado da solteirice depois de certa idade, despertou em mim certa melancolia.

Mas as reflexões mais relevantes e tema desse texto são de outra natureza. Falo da questão religiosa. Na maioria desses sites o usuário aponta qual a sua religião. E eis minha descoberta empírica: um número desproporcional de gente se considera “espiritual, mas não religiosa”. O que diabos seria isso? O que exatamente essa expressão tão vaga quer dizer?

Esse pessoal, creio, quer insinuar que até acredita em Deus, mas sem cair nessa baboseira obscurantista de dogmas, rituais ou pertencer a alguma entidade com 2 mil anos de vida. Seu “Deus” é mais energia, e não impõe tantas obrigações. Na verdade, praticamente não há sacrifícios exigidos como contrapartida da fé. Religião remete a algo ultrapassado, de que aqueles alienados de direita gostam. A elite esclarecida tem uma “energia” a que chama de Deus, mas pode se desapegar do resto todo.

O resto todo, porém, é justamente o que criou historicamente o tecido social, a comunidade, aquilo que se pode chamar de “família estendida” e “espírito público”. Frequentar a missa ou o culto aos domingos dá algum trabalho, e a alternativa pode ser mais sedutora: pegar uma praia, jogar um videogame, dormir. O “espiritual, mas não religioso” não precisa enfrentar esse fardo e se sacrificar. Ele segue seus impulsos mais hedonistas e egoístas, mas repete que tem Deus (ou energia, ou amor) no coração.

É mais fácil, trocando em miúdos. E, como temos gerações cada vez mais “desapegadas”, que viajam com “bagagem leve” (como George Clooney naquele filme), sem buscar maior profundidade nos relacionamentos ou sem aceitar que com a liberdade e os direitos vêm também os deveres, essa turma encontra nessa “espiritualidade” de botequim um prato apetitoso.

O sujeito faz, como ironiza Pondé, um “workshop budista” em Angra dos Reis e volta renovado, achando que atingiu o nirvana espiritual, a ponto de olhar para os reles mortais de cima para baixo, com quase desprezo por seu apego a bobagens materiais. Eis o segredo: os modernos querem atalhos. Querem ler um livro sobre “o segredo” e achar que efetivamente encontraram uma resposta mágica, sem ter de dedicar a vida a estudos e reflexões mais densas.

Somos quase todos adeptos do carpe diem hoje, vivendo no “aqui e agora”, abraçando tudo aquilo que é efêmero e virando as costas para o que é eterno e transcendental. Nesse contexto, manter a “espiritualidade” sem precisar do que vem junto com as religiões, mesmo que sejam as fábricas do tecido social que garante nossas liberdades, é uma opção tentadora demais.

É por isso que temos visto igrejas “inovarem” para não perderem muita “clientela”. Fazem shows, servem pizza com cerveja, colocam padres para escalar muros, criam espaços divertidos para as crianças, ou seja, transformam-se em algo completamente diferente do propósito de uma igreja, tudo para ser “moderninha” e atrair público – um público que, no fundo, não quer saber de nada mais trabalhoso para chegar até Deus.

Sacrifício é uma palavra fora de moda, assim como obrigação. Queremos prazeres e direitos, e que ninguém nos importune muito. Gostamos de julgar os atos alheios, mas detestamos quando somos julgados. Quando fazemos algo errado, e no fundo sabemos disso, apelamos para o relativismo moral: ninguém é melhor do que ninguém, o típico discurso de quem está fazendo besteira. Aquele “observador imparcial” nos incomoda muito.

O problema desse desapego todo é que, como sabia Aristóteles, o hábito faz a virtude. Achar que podemos simplesmente buscar uma “espiritualidade” quando sentimos vontade ou necessidade é ignorar o que significa, de fato, uma vida mais espiritual. Abraçar o sentido trágico da vida, encarar o vazio e a solidão que nos corrói, aceitar as contingências do destino, assumir, enfim, a condição humana não é tarefa trivial. As fugas são tentadoras, inclusive a arrogante vaidade de só apontar para as fugas alheias e se sentir superior a todos os demais covardes.

A questão é que há fugas e fugas. E essa “espiritualidade para idiotas”, como chama Pondé, pode até estar bem alinhada com as características da modernidade superficial, mas não satisfaz as demandas mais enraizadas em nossa natureza. Enxergar a espiritualidade como algo que trata do “bem”, da “felicidade”, do “equilíbrio energético”, isso não passa de engodo. A espiritualidade verdadeira, segundo Pondé, começa na agonia, no vazio, no reconhecimento de que estamos fadados a atravessar a vida com nossa consciência das suas tragédias, da sua finitude e da existência do mal, e em busca de sentido, que muitas vezes precisamos criar.

Essa “espiritualidade” empacotada para comercialização burguesa é extremamente narcísica, foca no “eu” o tempo todo, bem ao gosto do freguês, o mesmo que costuma ler livros de autoajuda. É o mundo divino a serviço do homem, e não o contrário. Mas, como mostra Joseph Campbell em The Hero With a Thousand Faces, todas as importantes culturas e religiões entenderam que é na supressão do ego que os heróis podem se aproximar do divino.

Sei que essa digressão toda não faria muito sucesso num site de relacionamento, e que a pessoa “espiritualizada” provavelmente sairia correndo de alguém com esse papo. Felizmente estamos numa conversa entre adultos, com o intuito de amadurecimento e aprendizagem mútuos. Trago, portanto, o que aprendi nessa rápida busca: poucos assumem abertamente uma visão materialista da vida, mas muitos desejam vestir somente uma capa de espiritualidade, dar um verniz de refinamento da alma sem abandonar a preguiça e o egoísmo.

Buscar de fato uma existência mais espiritual, ou mergulhar numa rotina religiosa que exige esforço e dedicação, isso parece cada vez mais fora de moda. E o tecido social segue esgarçando…

Texto originalmente publicado pela Gazeta impressa

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