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Fukuyama foi do “fim da História” ao “fim da picada”
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Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal

O nome do cientista político Francis Fukuyama causou maior frisson quando produziu, em 1989, seu alardeado ensaio “O fim da História”, pontificando o triunfo e universalização da democracia liberal e o réquiem dos grandes conflitos ideológicos e civilizacionais. Nem ele mais está tão seguro disso. A julgar pela entrevista que concedeu à Folha de S. Paulo, porém, o pensador parece continuar selecionando de forma no mínimo questionável suas dúvidas e certezas, distinguindo com base em critérios nebulosos o que pensa ser simples de se afirmar e o que é complexo.

Em vez do glorioso desfecho das forças históricas, Fukuyama agora vê uma perigosa ascensão de forças políticas nacionalistas e inimigas da globalização no horizonte ocidental, mais além do que propriamente em países que nunca desenvolveram tradições democrático-republicanas, como os grandes atores Rússia e China (esta última, vale dizer, empolgada por exportar seu modelo ideológico, contrariando a tese do pensador de que não se estaria mais investindo em espalhar propostas alternativas à democracia). O nacionalismo populista está ganhando fôlego, ameaçando os pilares do sistema que ele outrora julgava estável e definitivamente vitorioso: “um Estado que concentra poder e o utiliza pelo bem dos cidadãos; a igualdade de todos perante a lei; e mecanismos de controle do poder, como eleições livres”.

Os populistas contemporâneos, para Fukuyama, estariam se aproveitando das eleições livres para corroer, de dentro, os outros dois pilares, demandando uma urgente mobilização “para vencê-los nas urnas”. Conservemos esse raciocínio; ainda voltaremos a ele. Fukuyama prossegue: “A defesa tradicional da liberdade de expressão depende da percepção de que, num livre mercado de ideias, as melhores vão vencer. Com os algoritmos das redes sociais, isso não é verdade”.

Acrescenta: “Precisamos de mais curadoria na Internet. Precisamos do retorno de editores e outros guardiões da informação e as plataformas digitais precisam assumir sua responsabilidade”. Perguntamo-nos sinceramente se, tal como sugere Fukuyama, seus antigos “aliados” na “revolução conservadora” dos anos 80, Ronald Reagan e Margaret Thatcher, teriam concordado em embarcar em tamanha onda histérica de prevenções contra as “Fake News virtuais” e a liberdade da rede.

A oferta de informações nunca foi tão vasta. Se os algoritmos do Facebook podem fazer circular prioritariamente pontos de vista similares dentro de um mesmo círculo de relações, os “outros lados” das questões nunca estiveram tão facilmente ao alcance. Seria isto comparável às tiranias de Estado, onde, sobretudo sem a existência da Internet, em vez de redes sociais, tínhamos a censura oficial e a prisão ou execução sumária das vozes discordantes?

As plataformas e redes “assumirem sua responsabilidade” pode significar muitas coisas, mas quase todas cheiram a censura e mais controle. Esse excesso de desespero de certos analistas, por razões que não parecem incomodar tanto a população em geral, exibe muito mais os contornos de uma ansiedade incontida por parte de certa camada da elite cultural contemporânea, ao se perceber desafiada pela massiva divergência, que um autêntico apreço pela verdade. Ferramentas de controle e censura não hão de ser mais propensas a qualificar a circulação da informação que a competição aberta dos produtores de conteúdo.

O pior da entrevista, porém, está no que se lê nas entrelinhas. Falando sobre certezas, Fukuyama não tem nenhuma dúvida em incluir o deputado e provável presidenciável Jair Bolsonaro como representante brasileiro da sua tão temida onda nacionalista populista. “Bolsonaro representa uma verdadeira ameaça à democracia. Subjacente a isso, há uma polarização social no Brasil, que transformou em luta ideológica o que começou como campanha anticorrupção”.

Para começo de conversa, o que Fukuyama chama de “luta ideológica” só pode ser a disposição, com absoluta pertinência e já tardia, de se “dar nome aos bois”. Isso está incomodando demais certas suscetibilidades, mais preocupadas com o “terrível perigo da divisão da sociedade” hoje do que nunca. Quando o PT dividia o Brasil entre “nós” e “eles”, entre os amigos do rei e os inimigos do povo (o “povo honorário”, como diria Olavo de Carvalho, aquele que compõe seu luminoso estamento superior), então essas mesmas vozes não pareciam tão preocupadas. Os mesmos problemas que apontam não soam tão incômodos, dependendo do lado que se esteja atacando ou da conjuntura de que se está falando.

Se Fukuyama quer apenas que se fale em “luta contra a corrupção” em vez de enfrentar os corruptos, com nome, sobrenome e carteira de identidade; se quer que façamos manifestações inócuas para combater uma abstração, enquanto sofremos as consequências de um esquema criminoso de poder que obedecia, sim, a uma orientação ideológica – razão por que o elemento ideológico passa longe de ser estranho ao diagnóstico; se é nesses termos, caros a certa intelectualidade brasileira, notoriamente de esquerda, que ele deseja que permaneçamos, então, seguindo seu juízo, não chegaremos a lugar algum.

Bolsonaro é sim, julgamos, sob vários aspectos, uma incógnita; incógnita, não a absoluta certeza do Apocalipse, como transparece para Fukuyama. De qualquer modo, sua pregação atual não apela à destruição, por exemplo, da igualdade perante a lei, que o cientista político julga ameaçada pelo grupo dos nacionalistas populistas em que o enquadra. Ao menos nem de longe tão explicitamente quanto no discurso daqueles que defendem “cotas raciais” por “dívida histórica” nas universidades, concursos públicos e até nas Forças Armadas. Para essa turma, cujas atitudes já tiveram e ainda têm seus efeitos largamente experimentados no país, Fukuyama reserva, ao contrário do que faz com Bolsonaro, poucas palavras e muitas incertezas.

Perguntado sobre o ex-presidente Lula e sua condenação, entrevistado antes de o petista ser preso, ele disse: “Esse é um assunto muito complexo que não quero abordar nessa entrevista”. Que coisa, não, senhores? Lula é “muito complexo”. O mensalão é muito complexo, as páginas e páginas da sentença de Moro são muito complexas, o Petrolão é muito complexo, o apoio a todos os tipos de ditaduras mundo afora é muito complexo, o desafio constante às instituições e ao patrimônio alheio e a incitação ao “exército de Stédile” são muito complexos. Sobre isso, Fukuyama não consegue tecer qualquer simplificação, não consegue pensar em qualquer afirmação de obviedade.

Bolsonaro é um demônio. O “nacionalismo populista” da “direita bicho-papão” é uma monstruosidade antidemocrática. O lulopetismo? Ah, é muito “complexo”. Imagino que a ditadura venezuelana, dos amigos de Lula e Dilma, também seja algo muito “complexo” para comentar. Amigos leitores, dos píncaros do “fim da História” que até há pouco postulava, ao abordar tão contraditoriamente a realidade brasileira, que pelo visto desconhece, ou cujas verdades atraiçoa de má-fé, Francis Fukuyama desceu ao “fim da picada”.

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