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A legalidade atacada à esquerda e à direita
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Por Rafael Valladão, publicado pelo Instituto Liberal

O império das leis e o curso regular dos procedimentos legais é um dos fundamentos da democracia liberal. Entende-se, em toda a tradição liberal-democrática, que as leis são instrumentos impessoais de regulação da ordem política, que submetem a todos igualmente, sem discriminação de qualquer natureza. Idealmente, as leis devem funcionar como marcos da normalidade jurídica do país e como fatores de equilíbrio das instituições. Em outras palavras, o cumprimento efetivo das leis é a base para qualquer democracia liberal que se preze. Por essa razão, costuma-se medir o nível de estabilidade institucional de um país pela maior ou menor longevidade das Constituições ou pelo vigor das leis enraizadas na jurisprudência. É por isso que a Inglaterra e os Estados Unidos são usualmente tomados como democracias exemplares: a primeira pela durabilidade de seu sistema de governo e o segundo pela efetividade de suas leis.

Uma Constituição duradoura é indicadora dos níveis de amadurecimento político de um país. O Brasil, nesse sentido, deixa a desejar. O tema da legalidade volta à discussão depois que o petista Fernando Haddad propôs a realização de uma Constituinte em condições obscuras e o vice de Jair Bolsonaro, general Hamilton Mourão, disse ser favorável à redação de uma nova Constituição por uma comissão de “notáveis”, sem a convocação de uma Constituinte. Haddad e Bolsonaro lideram as pesquisas de intenção de voto e devem se enfrentar num eventual segundo turno, pelo que suas propostas em relação à lei maior do país devem ser consideradas com lucidez e sobriedade.

Fernando Haddad, dublê de Lula na corrida pelo Planalto, afirmou que é preciso “criar as condições de sustentação social para a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte”, o que significa que o partido está determinado a virar as instituições do Brasil pelo avesso, já que o funcionamento regular delas investigou e condenou o patriarca petista à cadeia pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Os petistas agem como a criança que, jogando videogame com amigos, decide “resetar” todo o jogo para evitar perder. Essa sanha golpista não é nenhuma novidade no petismo. Quando Dilma Rousseff foi legalmente impedida de continuar no poder, seus aliados tentaram embalar um coro por “Diretas Já”, tentando reeditar o movimento social que mobilizou todo o país no fim dos governos militares. Se Michel Temer era considerado “ilegítimo” para os petistas, não havia nada de errado em exigir novas eleições presidenciais. Se a gente não gosta desse presidente Temer, então vamos pedir novas eleições – pensavam os fiéis da seita petista. O PT, que tantos benefícios obteve, decorrentes da abertura política proporcionada pela Carta Magna de 1988, chamada a Constituição Cidadã, agora se volta contra o texto constitucional em vigor há quase 30 anos. É flagrante a incoerência petista: só aceitam o jogo enquanto estiverem ganhando. Além disso, José Dirceu, terrorista emérito do partido, afirmou que o PT vai obter o poder, “o que é diferente de ganhar eleição”. Dirceu não esconde seus desejos golpistas de sacrificar a legalidade do país à realização de sua própria ganância.

O argumento dos petistas é que a atual Constituição não contempla os interesses populares, ou seja, não viabiliza o projeto de poder do partido. Acontece que, do outro lado do espectro ideológico, o candidato a vice de Jair Bolsonaro se utiliza de argumento semelhante para pedir nova Constituição, com o agravante de ser redigida por “notáveis”, e não por constituintes eleitos pelo voto popular. Segundo o general Mourão, “uma Constituição não precisa ser feita por eleitos pelo povo”. Mourão está reproduzindo o discurso tecnocrático-autoritário dos militares que vê no texto constitucional não o reflexo dos interesses e das aspirações genuínas de uma nação, mas sim um texto normativo e técnico que pode perfeitamente ser escrito por “entendidos no assunto”. O general perde de vista que um pré-requisito para toda Constituição republicana é a legitimidade, ou seja, a aceitação participativa do povo na construção da política nacional. O último texto constitucional redigido por “notáveis” foi a Carta de 1937, outorgada pela ditadura do Estado Novo. Nem mesmo os militares, em 1967, foram tão longe. A Constituição de 1967 foi elaborada pelo Congresso Nacional, que, apesar dos pesares, era a instituição que reunia os representantes legítimos dos cidadãos.

Esse coro por novas Constituições é sintomático da crise institucional vivida no Brasil. Muito se fala sobre a “crise de representatividade”, a respeito da falta de identificação dos eleitores com seus eleitos. Mas há uma crise maior e mais grave em curso desde 2013, mais ou menos, que é a crise das instituições. O Poder Legislativo interfere no Executivo, o Judiciário quer legislar, o Executivo quer revirar o Judiciário, e por aí vai. Os poderes não se respeitam reciprocamente; basta lembrar de ministros do Supremo Tribunal Federal querendo liberar o aborto, sem a aprovação do Congresso. Para agravar a situação, os dois líderes nas pesquisas de intenção de voto para a presidência da República, em vez de reafirmarem a necessidade de preservar o funcionamento regular das instituições, se metem a pedir novas Constituições, como se o texto constitucional fosse descartável e substituível ao sabor dos acontecimentos. Não é assim.

Uma Constituição deve atravessar os anos como o fundamento jurídico-legal dos governos e como o marco do Estado democrático de direito; deve resistir às investidas golpistas de burocratas interessados em ampliar seus poderes em detrimento da estabilidade institucional do país. As alterações no texto constitucional devem seguir os procedimentos legais, em obediência à legalidade. Do contrário, o arbítrio se sobrepõe ao direito e a barbaridade toma o lugar da civilização. Uma herança de valor inestimável da tradição liberal-democrática é o constitucionalismo, é a garantia de que os direitos e deveres consagrados na Carta Magna sobreviverão à troca periódica de governos. Em entrevista à BBC Brasil, o ministro do STF Marco Aurélio Mello afirmou que o Brasil precisa de políticos que cumpram a Constituição e não que desejem substituí-la. Disse o ministro:

“O que precisamos é de homens públicos que observem a ordem jurídica constitucional. Temos um documento básico na República que é menosprezado. Por isso é que se fala tanto em redigir-se outra Constituição (…) Precisamos de homens que cumpram e amem mais a Constituição, que tenham apego pelo que está estabelecido e cumpram o que está estabelecido.”

O Brasil tem uma tradição autoritária alarmante: já tivemos 7 Constituições. Os Estados Unidos têm a mesma carta constitucional desde 1788, a Inglaterra tem leis datadas do século XIX, e o Brasil? Nós criamos uma Constituição a cada momento de disrupção institucional, como se fosse necessário demarcar juridicamente os domínios do novo governo, como se as leis não fossem propriedade da nação, mas sim ferramentas de poder à disposição de quem tomasse de assalto o governo. Foi assim que Getúlio Vargas revogou o texto republicano de 1891, criou, sob pressão, a carta de 1934 para, apenas três anos depois, revogá-la sumariamente e instituir a ditadura de 1937. Quando o fim da Era Vargas exigiu nova Constituição, saiu a carta de 1946, logo revogada pela chegada dos militares ao poder; estes fundaram seus governos no texto de 1967, só substituído em 1988 pela Constituição cidadã, fruto dos clamores do povo brasileiro por democracia. E agora, passados apenas 30 anos desde a Constituinte que animou o Brasil com os ares da legalidade e da cidadania, Fernando Haddad e general Mourão afirmam na maior cara de pau que é preciso mudar a Carta Magna. Por quê? Porque Haddad e Mourão, assim como os outros poderosos que os antecederam, não hesitam em incinerar a lei e a ordem em favor de seus projetos de poder. Não podemos fechar os olhos a esses flertes com o golpismo à direita e à esquerda, afinal, o “preço da liberdade é a eterna vigilância”.

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