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Magna Carta: a tradição da liberdade britânica
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O primeiro painel do Estoril Politcal Forum 2015 foi sobre seu principal tema, a Magna Carta assinada pelo Rei João em 1215 por pressão dos barões. O documento significou um marco para as democracias liberais modernas, impondo limites constitucionais aos monarcas. Mas até que ponto foi algo fora da curva, e até que ponto foi apenas a consagração por escrito de um costume já relativamente enraizado na vida daqueles lordes ingleses?

Para James Murphy, do Dartmouth College, o papel da tradição é justamente inovar sem a pretensão de inovar, invocando o passado como se estivesse apenas preservando o que já existe, mas acrescentando novidades. Trata-se, enfim, de uma evolução gradual, como galhos que partem do tronco central, sem ignorá-lo ou abandoná-lo. Para aqueles barões, “homens livres” não incluíam, por exemplo, as pessoas comuns, muito menos as mulheres. Mas com base na Magna Carta, ou melhor, em seus princípios, as liberdades foram avançando dentro da tradição britânica, gradualmente. A Independência Americana é o reflexo disso, e dela partiram novas liberdades depois.

Vários palestrantes citaram a Batalha de Agincourt, duzentos anos depois da assinatura da Magna Carta, que teria sido decisiva na Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e França. Mais do que o evento em si, ficou dele a interpretação poética que Shakespeare deu, tempos depois, em seu Henrique V, selando a importância do sentimento de unidade daqueles povos. Em uma cena memorável, o rei fala a todos como um só povo, enquanto os nobres franceses se preocupam apenas com sua aristocracia.

O discurso do rei pela pena do bardo despertaria o patriotismo dos ingleses, o que encontraria eco séculos depois em discurso também memorável de Winston Churchill, quando a própria sobrevivência da liberdade dos ingleses estava ameaçada pelo nazismo. Tudo isso é relevante para mostrar que não basta um pedaço de papel, um contrato por escrito, pois isso não é suficiente para se preservar a liberdade. É o sentimento comum que importa mais. É a disposição do povo de lutar pela liberdade que a garante. É, em suma, a cultura da liberdade.

Paralelos foram traçados com a França, especialmente a napoleônica, em outra data relevante para o fórum: a Batalha de Waterloo, há 200 anos. Napoleão, de cima de sua arrogância, criou um sistema inspirado na ala racionalista do iluminismo que fazia “tábula rasa” do passado, das tradições. Tudo começaria “do zero”, ex-nihilo. Nessa visão de mundo, a liberdade não é descoberta como uma espécie de direito natural, mas sim imposta de cima para baixo, concedida pelo próprio governante. Ora, liberdade concedida não é liberdade; é permissão temporária.

Com base nessas brutais diferenças, pode-se analisar o resultado também brutalmente diferente das colonizações britânica e francesa. Os Estados Unidos teriam a semente da liberdade por seguirem essa tradição britânica, e Edmund Burke chegou a defender os direitos dos colonos com base nos mesmos princípios aplicados em sua Inglaterra. Na França, apenas a ideia de exploração para beneficiar a Coroa ditava os comportamentos, sem, com isso, plantar a ideia da liberdade nesses locais.

Para o common law inglês, a Constituição é algo que simplesmente estabelece em palavras aquilo que já está razoavelmente estabelecido nos costumes, e o papel dos juízes é julgar de acordo com essa tradição, sem deixar de levar em conta as mudanças do tempo (mas sem ativismo voluntarista dos juízes “revolucionários”). Tudo aquilo que o governo não proíbe está permitido. Já para a linha francesa, tudo aquilo que o governo permite é o que está permitido, ou seja, coloca-se a autoridade maior no estado, não no próprio povo.

Uma questão levantada por Danilo Petranovich, diretor do Elm Institute, é até que ponto a religião teve papel crucial nessa tradição da liberdade britânica. Será que não teríamos uma Carta Magna sem o cristianismo, sem o próprio conceito de direito natural? O palestrante deixou mais dúvidas do que respostas no ar, e serve para a reflexão de todos. Sinceramente, não sei a resposta, e qualquer uma não passará de especulação contrafactual.

Mas o fato em si é que tal tradição só surgiu no Ocidente, colocando essa ênfase no indivíduo, tratando o estado como um ente que lhe serve, e não o contrário. E que faz isso limitado por uma Constituição, pois seu poder, mesmo que amparado pela maioria, jamais pode ser arbitrário, muito menos ilimitado. Essa é a grande tradição da liberdade que vem principalmente dos ingleses, e que tem seu marco simbólico na assinatura daquela grande carta em 1215. Devemos lutar para preservar tal tradição.

Rodrigo Constantino

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