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O “apartheid” brasileiro: a verdadeira luta de classes em nosso país
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Tenho um texto bastante antigo em que sustento que os marxistas erram ao falar de uma “luta de classes” entre capitalistas e trabalhadores, que são na verdade aliados, mas que existe de fato uma luta de classes: aquela entre trabalhadores e estado, produtores de riqueza e privilegiados.

Toda fórmula simplista é perigosa, pois por mais que tangencie a verdade, ignora uma realidade bem mais complexa, instigando uma visão maniqueísta e binária. É preciso fazer esse alerta, especialmente em tempos tribais das redes sociais.

Dito isso, parece-me que essa “luta de classes” é bem mais realista do que aquela marxista, ainda que ambos sejam simplificações grosseiras do mundo real, sempre mais complexo, repleto de nuances e regiões cinzentas.

Lembrei desse meu texto ao ler a coluna de Fernão Lara Mesquita no Estadão hoje. Ele fala, em tom de desabafo, como de praxe, do “apartheid” que existe em nosso país, da “guerra” entre os dois Brasis distintos.

Para o jornalista, há um abismo entre quem produz e vive no dia a dia caótico imposto por um estado ineficiente e corrupto, e quem acumula benesses desse mesmo estado, vivendo à custa de quem produz.

A mídia “progressista”, porém, não enxerga essa realidade e foca em pautas secundárias, em busca de “lacres”. E essa falta de sintonia com o Brasil “real” é que tem levado a uma perda de credibilidade da imprensa, o que é perigoso para a democracia.

Mesquista menciona o caso do The Intercept, “uma das marcas-fantasia de PSOL, PT e cia.”, que tenta abortar a abolição da “escravatura”, mantendo os privilégios da classe de cima. Cita o regime de capitalização retirado da reforma, “que mataria para todo o sempre o comércio de privilégios previdenciários”.

Seriam as forças do pântano, como diz Paulo Guedes, reagindo contra as tentativas de modernizar o país:

O apartheid brasileiro tem raízes profundas. O Brasil Real, o Brasil que deu certo, o Brasil que se fez sozinho escondido do outro, este Brasil continua, como sempre esteve, à margem da lei. A lei foi feita pelo País Oficial, o antiamericano, o que sempre viveu das “derramas”, o que enforcou Tiradentes, o que invadiu o Rio de Janeiro em 1808, de modo a não poder ser cumprida jamais. É a continuação do Brasil dos traficantes de escravos que compravam pedaços do Estado (feudos) e “títulos de nobreza” ao rei. São as deles as tais instituições que “estão funcionando”.

Só dois pontos destes dois Brasis sempre estiveram conectados: as mãos de um e os bolsos do outro. No mais, são antípodas em tudo. Na educação, bola da vez, há os nédios professores das universidades públicas que comem o grosso da verba nacional, aposentam-se na flor da idade e dão aulas nos enclaves privatizados do território brasileiro onde polícia não entra (Coafs e tribunais de contas, menos ainda) e se formam, “de graça” e sem lei, os quadros da elite do País Oficial. E há as professorinhas miseráveis, que não se aposentam nunca, das escolas básicas varejadas de balas perdidas, caindo aos pedaços, creches de quase adultos que vão lá para comer da mão do País Oficial o pão que a “educação” que ele lhes serve não consegue comprar.

O sindicato desses diferentes professores é, no entanto, o mesmo. Com estrutura nacional, vem a ser o núcleo duro da defesa da privilegiatura. Escudados na miséria das professorinhas, são os professorões que organizam aquela rede que sai em passeatas milimetricamente cronometradas com as pautas em tramitação no Congresso Nacional e nas redações que empregam seus parentes, amigos e correligionários, para “provar” a “impopularidade” de acabar com os salários e as aposentadorias 100 vezes, 50 vezes, 30 vezes na média nacional maiores que as do favelão que paga a conta.

O povo trabalhador, ordeiro, que preserva valores morais, é submetido a um inferno burocrático, a uma carga pesada de impostos, a uma insegurança total, enquanto o estado lhe usurpa até o direito de tentar se defender com uma arma de fogo.

Enquanto isso, a imprensa segue avaliando com seu duplo padrão as vítimas da violência: “No quesito segurança, aliás, o esforço concentrado da ala mais “progressista” do nosso jornalismo é para discriminar cadáveres. Depois de todo o resto a desigualdade em nome da igualdade chega, finalmente, aos necrotérios. Cadáver de mulher vale mais – e dá pena mais pesada – que cadáver de homem e menos que cadáver de homossexual ou de transgênero. E, em todas essas subcategorias, ganham “peso 2” os que acumulam a qualidade de não brancos”.

Tudo isso é bem próximo da realidade, ainda que, como disse, simplificado demais. Mas eis o ponto inegável: há um Brasil que quer apenas trabalhar, louvar a Pátria e a família, viver em segurança, e preservar o fruto de seu esforço, enquanto há outro que vive de mamatas, esquemas, privilégios, pilhagem, corrupção. E as leis muitas vezes protegem esse último grupo!

Esse é o ambiente perfeito para líderes populistas, messiânicos, que falam em nome do povo contra todas as elites, instituições, imprensa. Na realidade, mais complexa, há interseção entre os dois grupos, há funcionários públicos lutando pelo progresso, há oportunistas do lado do “povo”, há ambiguidades que impedem uma visão mais binária da coisa.

Mas mesmo reconhecendo o risco de se alimentar o populismo com esse discurso, o fato é que ele não passa muito longe da nossa realidade. Existem dois Brasis em nosso país, e esse “apartheid” gera sérios problemas para nossa democracia, pois a sensação crescente do lado de quem produz é que a casta privilegiada domina as instituições das quais as mudanças dependem, ao menos pelas vias legais e democráticas.

Cada vez mais gente perde as esperanças nas instituições e clama por mudanças mais revolucionárias. Mesquita encerra com uma questão angustiante: “Se o Brasil “é uma democracia”, como parecem crer 9 entre 10 dos nossos jornalistas, qualquer alteração no status quo será “antidemocrática”. O.k., então. E para onde vamos na sequência da aceitação dessa premissa?”

Rodrigo Constantino

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