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O benefício da lei ao Diabo é para nossa própria proteção: mas há limites!
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No debate entre “garantistas” e “justiceiros”, onde ficar? É possível preservar o bom senso e o império das leis, sem cair num extremo ou outro? Eis o dilema: se você sabe que o sujeito é um bandido, um marginal, o Diabo em pessoa, até onde você está disposto a ir para puni-lo? Se a única forma de fazê-lo for ao arrepio da lei, assim deve ser feito, de qualquer jeito?

No clássico “Man for All Seasons” há uma cena famosa em que Thomas More rebate o pedido para que puna um sujeito “diabólico”, mesmo afrontando a lei humana, com base na lei de Deus. Sua resposta é uma ode ao império das leis, ao “garantismo” legal de quem teme o arbítrio dos homens:

Eis o diálogo em tradução livre:

Roper: Então agora você daria ao Diabo o benefício da lei!

More: Sim. O que você faria? Pegaria um grande atalho cortando a lei para ir atrás do diabo?

Roper: Eu cortaria todas as leis na Inglaterra para fazer isso!

More: Oh? E quando a última lei caísse, e o Diabo se virasse para você – onde você se esconderia, Roper, as leis estando todas abaixo? Este país está enraizado com leis de costa a costa – as leis do homem, não as de Deus – e se você derruba-las – e você é o homem certo para isso – você realmente acha que poderia ficar de pé nos ventos que soprariam então? Sim, eu daria ao Diabo o benefício da lei, para minha própria segurança.

Em outras palavras, defendemos o império das leis mesmo para os piores, pois essa é a única forma de nos protegermos, de garantirmos alguma blindagem contra o arbítrio humano. Eis aí o mais forte argumento a favor do garantismo.

O problema, claro, é que alguns se utilizam desse conceito para extrapolar, para defender não o império das leis e seu espírito, mas a impunidade possível pelo excesso de “filigranas” no labirinto legal, especialmente em países como o Brasil, onde as camadas legais parecem feitas justamente para impedir que quem tem acesso aos mais caros advogados vá preso.

Esse caso já nos remete a outro clássico, “O Mercador de Veneza”, de Shakespeare. Shylock tem direito ao seu naco de carne de Antonio, pois está no contrato. Ou as leis não valem mais em Veneza? O problema é que o ressentido judeu foi traído pelo mesmo instrumento: o legalismo exacerbado. Afinal, não há nada no contrato sobre sangue derramado. Shylock pode retirar sua libra de carne, então, mas sem deixar escorrer uma só gota de sangue!

O dilema que vejo é preservar o máximo possível do império das leis objetivas, sem cair no legalismo dogmático que fere o próprio espírito das leis. Qualquer defesa do bom senso será imperfeita, pois com algum grau de subjetividade. Mas não vejo muita alternativa: os extremos – garantismo fanático ou arbítrio pleno – parecem igualmente fadados ao fracasso.

Há inclusive uma expressão latina para definir o fanatismo garantista: Fiat iustitia, et pereat mundus. Ou seja, faça-se justiça mesmo que o mundo pereça. Mas quem está, de fato, disposto a levar ao extremo tal noção? Se o mundo acabar, não há mais justiça.

Existe uma região mais cinzenta onde a meta é aplicar com rigor as leis existentes, sem cruzar linhas bem definidas, mas onde há algum espaço para flexibilidade. É nessa área que a maioria transita, buscando a justiça por meio das leis, mas sem esquecer que as próprias leis podem, às vezes, servir para impedir a justiça.

Os nobres fins não justificam quaisquer meios. Para pegar o Diabo não vale “tudo”. Mas cuidado com quem tenta ser mais realista do que o rei, bancando o “garantista” defensor das leis enquanto, na prática, está apenas servindo como advogado do Diabo.

Rodrigo Constantino

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