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O estranho caso do “credo liberal”
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Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal

Desde que publiquei meu artigo a respeito da questão do “Estado católico”, reações de toda sorte ocorreram e continuam a ocorrer, tanto em círculos liberais e conservadores quanto nos círculos tradicionalistas antiliberais que eram alvo da crítica. Muitas dessas reações fugiram ao mínimo da compostura, outras investiram na sordidez das mais puras mentiras, e algumas, felizmente, demonstraram compreensão do que quis dizer.

Não tenho nenhuma intenção de citar nomes e prolongar contendas pouco construtivas, mas ainda parecem caber alguns esclarecimentos interessantes sobre certas questões levantadas. Um dos argumentos suscitados desde o princípio era o de que o artigo estaria comparando a Igreja Católica e, por extensão, sua doutrina, ao comunismo e às determinações legais e institucionais da lei islâmica. O equívoco flagrante desse “raciocínio” se patenteia pela quantidade de amigos católicos que defenderam a premissa fundamental do artigo.

O cultivo da fé católica, que é, culturalmente, sim, um dos alicerces da civilização ocidental e, particularmente, da formação da nacionalidade brasileira, deve ser respeitado e livremente franqueado a todos que desejarem realizá-lo. Não compartilho, também, do parecer daqueles que desejam uma perseguição laicista intransigente aos aspectos culturais do país que derivam dessa mesma fé e dessa mesma formação – feriados cristãos, procissões ou crucifixos em tribunais, por exemplo, não me causam a menor espécie, ainda que não professe a fé católica.

Porém, a proposta mencionada em nosso artigo de “ordenar o Estado a Deus” (isto é, à Igreja e sua doutrina) e de ouvir a Deus “e não ao povo” para a tomada de decisões no campo político-institucional é um passo adiante, que não tem como se materializar sem um componente de notório autoritarismo. Muitos tradicionalistas – que veem a “tradição” como um dogma inalterável, e não como uma gramática social sujeita às transformações e elaborações espontâneas, tal como no conceito usado por João Pereira Coutinho em seu As Ideias Conservadoras – chegaram a comentar que defendem a subtração do direito de outras comunidades religiosas de executarem seus cultos ou formalizarem suas instituições publicamente.

Sem fazer juízo de valor entre doutrinas e crenças, julgo apenas o impacto no figurino legal e institucional, isto é, nas “regras do jogo” sociais, exercido por propostas alternativas de organização do Estado supostamente inspiradas nessas crenças. Se uma crença se pretende tornar “oficial”, “suprema”, dispensar o ritual da esfera representativa e as prerrogativas das minorias para automaticamente decretar o “bem e o belo” para toda a comunidade política, há evidentemente um caminho antiliberal sendo adotado, seja a retórica por trás disso vermelha, azul, budista, católica, islâmica ou do culto do unicórnio rosa. Não importa.

Não houve comparações, portanto; houve um critério comum para rechaçar ideias, por diferentes que sejam, que pretendam suplantar as premissas liberais da representação e da circulação livre de pensamentos distintos. Não tenho problema com os católicos e com o Catolicismo; tenho problemas com o “Estado católico” que estava sendo proposto. Se for como muitos de seus defensores o pintaram, é abusivo e ditatorial, e nós lutaríamos com todas as forças contra ele; se for apenas um Estado confessional como o Reino Unido ou a Argentina – em que a agenda abortista acaba de avançar no Parlamento -, não vejo que diferença a simples atribuição de um novo rótulo efetivamente faria para solucionar nossos complexos problemas reais.

Aí entra a acusação principal que recebi: a de que estaria me recusando a discutir o problema do “Estado católico” sem “impor” o “credo liberal” como pressuposto. Essa estranha evocação do conceito de um “credo liberal” parte do princípio de que existiria uma cartilha perfeita e delineada de princípios que todos os “liberais” deveriam seguir, tornando-os quase uma seita ou uma tribo ideológica homogênea, abarcando de maneira totalizante todos os aspectos de suas vidas ou de suas ideias. Essas pessoas não passaram nem perto de abrir uma página de José Guilherme Merquior, que traçou a história do liberalismo em seu O Liberalismo Antigo e Moderno.

Seguindo sua tradição conceitual, nunca tratei a ideia do “liberalismo” como um receituário ideológico-abstrato e monolítico – à maneira de muitos outros, reconheço -, muito menos como algum tipo de fanatismo secularista para expurgar a fé totalmente da vida pública. Porém, de fato, se por isso se entender esse estranho conceito de “credo liberal”, não negocio um princípio que caracterizou todas as formas de liberalismo historicamente concretizadas: a ideia de que indivíduos diferentes vivem em uma mesma sociedade e, sem afrontar valores também inegociáveis como a vida e a propriedade alheias, devem poder se expressar e organizar livremente. Afirmar-se que tal princípio fundamental de tolerância é a imposição de um credo ideológico, da mesma maneira que o seria a imposição de uma religião oficial investida do direito de censurar todas as demais, é inverter o próprio sentido de “imposição” e erigir em imperativo a derrubada do maior condicionante para a existência do próprio debate! Ora, se discuto a viabilidade e moralidade ou não de um “Estado católico”, é porque esse maravilhoso princípio liberal da tolerância permite que existam na sociedade pessoas que publicamente o defendem e as que o rejeitam. Se ele prevalecer, nos moldes que apontamos, então estas últimas, como nós, não poderão existir ou, ao menos, não poderão ter o mesmo espaço para sustentar suas posições.

A não ser assim, teríamos que considerar uma “imposição liberal” não aceitar o debate com nazistas, terroristas e outros autoritários cuja única intenção é provar que quem pensa diferentemente deles não deveria existir. Quem não aceita esse “credo liberal”, se assim o quiserem chamar, está dizendo simplesmente que, caso conquiste seus objetivos, o “outro lado” deverá se contentar em calar a boca, ser censurado ou quem sabe coisa pior.

Não tenho vocação para o suicídio e para o silêncio forçado, logo jamais aceitarei a rendição a tal retórica. Quem se incomoda com a “imposição do credo liberal”, nesses termos que acabei de expor, na verdade está incomodado por ter a sua vocação tirânica desnudada. Eis tudo.

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