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“Pensamento político brasileiro contemporâneo”: um “atlas” muito especial
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Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal

Mais do que um acadêmico respeitado e um lutador incansável pelo arejamento das nossas ideias, afortunadamente importado da Colômbia, o professor Ricardo Velez Rodríguez é um ser humano expansivo e generoso, que exala entusiasmo pelo belo ideal e encoraja com tocante sinceridade os que tentam ser seus novos e modestos soldados. Prestei uma merecida homenagem a ele em meu livro de estreia “Guia Bibliográfico da Nova Direita: 39 livros para compreender o fenômeno brasileiro”, em que comento dois de seus livros, e recebi dele presentes especiais: alguns trabalhos de sua lavra. Um deles, publicado pela Editora Revista Aeronáutica em 2012, é o ensaio Pensamento político brasileiro contemporâneo.

Curiosamente, meu próprio livro e este opúsculo do professor Vélez têm algumas semelhanças, já que ambos reúnem nomes de autores e obras para compreender algo em conjunto. Meu livro, porém, naturalmente bem maior em tamanho, compreendendo ensaios elaborados sobre cada obra nele elencada, tem o propósito de compreender um fenômeno em particular: a “nova direita” brasileira. O do professor é, naturalmente, um grande e único ensaio, mas seu propósito é abarcar algo bem mais amplo, e o faz com maestria: todo o pensamento, toda a elaboração intelectual efetivada no Brasil acerca dele próprio e de seus rumos necessários como nação, desde os anos 70 até hoje.

A qualidade mais impressionante do ensaio está na quantidade de nomes que abarca e na lista de obras de cada autor que ele relaciona em suas notas de rodapé – no seu caso, mais do que apenas notas de rodapé, elementos imprescindíveis do serviço que visa prestar ao leitor. O texto é basicamente um “atlas”, mas metaforicamente falando: não de lugares, mas dos ícones das principais correntes de pensamento que se debruçaram sobre o país, quer para compreendê-lo, quer para reinventá-lo.

Vélez diz ter escolhido, em primeiro lugar, o período contemporâneo para objeto de seu ensaio por ser aquele em que tem “convivido de perto com a cultura brasileira”. Não deixa, porém, de partir do que considera a definição dos arquétipos do pensamento sociopolítico brasileiro, algo que se teria dado na primeira metade do século XX, portanto antes dos anos 70. Esses arquétipos seriam a base de toda a auto interpretação brasileira e teriam sido estruturados por Gilberto Freyre, Oliveira Vianna, Caio Prado Junior e Florestan Fernandes – os dois primeiros, construindo modelos para interpretar a realidade em constante mutação; os últimos, entendendo-a através da matriz esquerdista da dicotomia entre as classes, ou “entre o capital e trabalho, de acordo com a dialética marxista”.

A seguir, Vélez separa uma infinidade de autores do período escolhido em oito categorias gerais de pensamento, “que foram emergindo da sua meditação e que correspondem a grandes tendências de cultura política encontradiças em outros contextos, mas que preservam a originalidade da problemática brasileira”. Algumas dessas oito categorias são visões de uma dimensão mais “macro” (a social democracia, por exemplo), outras são delimitações especiais de um esforço intelectual voltado a uma intenção particular (como o pensamento estratégico); daí, alguns autores podem estar de algum modo ligados a mais de uma delas, o que se percebe pela repetição (embora rara) de alguns nomes.

O leitor perceberá facilmente, no entanto, que a divisão é bastante útil. A primeira das oito linhas é aquela que ele chama de Escola weberiana brasileira, cuja referência é a concepção sociológica de Max Weber (1864-1920) acerca do conceito de “patrimonialismo”, tema central das obras do próprio Vélez que tive oportunidade de ler e que elucida muitos dos dramas que entravam o desenvolvimento brasileiro. Essa linha estaria centrada em continuadores do pensamento de Raimundo Faoro (1925-2003), que, em sua obra Os donos do poder, estabeleceu a origem do Estado no Brasil como derivada da “hipertrofia de um poder patriarcal original”, desembocando na matriz cultural a partir da qual nossos governantes e políticos adquiriram o péssimo hábito de “gerir os negócios públicos como propriedade familiar (ou patrimonial)”. Antônio Paim, Wanderley Guilherme dos Santos, Meira Penna, Jessé Souza e o próprio Vélez (muitos deles também liberais) são alguns dos autores elencados na categoria que empreende esse esforço, concentrada em um tema chave da formação social brasileira.

A segunda linha é o Liberalismo, na qual Vélez inclui Miguel Reale, Roberto Campos (a quem considera “o estadista mais lúcido que nossa cultura pública produziu nestes últimos anos, digno sucessor dos grandes liberais brasileiros, Cairu, Uruguai, Silvestre Pinheiro Ferreira, Mauá, Silveira Martins, Rui, Milton Campos, Gudin e Bulhões”), José Guilherme Merquior, Roque Spencer Maciel de Barros, os próprios Meira Penna e Paim novamente, e algumas figuras de relevo ligadas ao Instituto Liberal do Rio de Janeiro (o fundador Donald Stewart Jr., Og Leme, Mario Guerreiro, Alberto Oliva, Roberto Fendt, Ubiratan Borges de Macedo e o atual presidente do Conselho Deliberativo, Rodrigo Constantino), abrange várias das diferentes subdivisões do pensamento liberal que o próprio Merquior aborda em sua obra O Liberalismo Antigo e Moderno, representadas por intrépidos pensadores brasileiros.

Em terceiro lugar, Vélez relacionou o Conservadorismo e tradicionalismo, envolvendo autores cujas grandes preocupações seriam, respectivamente, o pendor tipicamente burkeano da “política prudencial”, do ceticismo e do gradualismo nas transformações, e – de maneira mais ou menos afeita a instituições liberais – os contornos culturais da trajetória histórica brasileira. Aqui ele destaca Vicente Ferreira da Silva (anterior a 1970, mas que ele considera importante para avaliar em generalidade o campo formado pelos demais, antecedendo-os na crítica à tecnocracia de inspiração positivista “em que se vazou o projeto modernizador brasileiro”), Adolpho CrippaPaulo Mercadante e o nosso tão conhecido Olavo de Carvalho. Esses autores estariam interessados em entender “o pano de fundo de crenças fundamentais em que se apoiam a imaginação e o logos” das sociedades que estudam – neste caso, a brasileira. No campo tradicionalista, ele destaca Alexandre Correia, representando o pensamento católico do Centro Dom Vital, José Pedro Galvão de Sousa (ambos influenciados por São Tomás de Aquino) e Plínio Correia de Oliveira, fundador do movimento Tradição, Família e Propriedade.

Escola de Frankfurt, em quarto lugar, inaugura o campo da esquerda no guia instrutivo do professor Vélez. Ele destaca dois autores: Vamireh ChaconSérgio Paulo Rouanet. Em quinto, também pela esquerda, Vélez prossegue sua divisão com a linha da Social Democracia, que, mesclando a “ênfase em políticas sociais distribuidoras de renda” com uma postura mais moderada e politicamente afeita ao sistema representativo, estaria representada por nomes como Fernando Henrique Cardoso, Hélio Jaguaribe, José Serra, Bolívar Lamounier, Simon Schwartzman, Carlos Henrique Cardim e Demétrio Magnoli. Um de seus diferenciais é ter sido a “ideologia” inspiradora de dois governos: os mandatos de Fernando Henrique, pelo PSDB, nos anos 90. A visão do professor sobre esses mandatos é bastante generosa, e aqui, sem exatamente discordar dos méritos apontados, nos permitiríamos uma diferença de ênfase, pois há que se destacar o aumento da carga tributária, aparentemente paradoxal com as reformas mais privatizantes de seu governo, aumento esse de que FHC se ufana em seu livro A Arte da política, dentre outros aspectos que favoreceram a formação de uma atmosfera cultural cada vez mais pronunciadamente à esquerda.

O antepenúltimo bloco compreende a Teologia da Libertação e a Doutrina Social da Igreja, ressalvando, a partir de uma análise do padre José Narino de Campos, a crescente radicalização à esquerda no seio da igreja. Teóricos como Leonardo Boff, Henrique Cláudio de Lima Vaz, o “Frei Betto” e João Batista Libânio foram e são inspiradores de uma doutrina que escraviza ao imanente a concepção transcendente da revelação divina na Igreja, associando-a à “luta revolucionária dos oprimidos contra os opressores”. Paralelamente a isso, no entanto, haveria forças mais moderadas, margeando “os ideais da democracia cristã” e valorizando “a doutrina dos Papas sobre questões sociais, sem fugir à discussão dos problemas do mundo contemporâneo”, representadas por Alceu Amoroso Lima, Leonardo Van Acker, Hubert Lepargneur, Dom Boaventura Kloppemburg e Urbano Zilles.

O professor traz, finalmente, um grande bloco, ao qual dedica muitas linhas, para o Socialismo, marxismo, lulopetismo e movimentos sociais, estudando figuras lamentavelmente nossas muito bem conhecidas, e outras nem tanto, mas todas mais ou menos relevantes para a configuração da desgraça intelecto-cultural que nos acomete. Nosso destaque vai para José Dirceu e Marco Aurélio Garcia, importantes ideólogos políticos do Partido dos Trabalhadores, autoridade em nosso mais recente ciclo político, e o ex-governador do Rio Leonel Brizola, juntamente com seu vice, o antropólogo Darcy Ribeiro, cujos efeitos deletérios ao nosso estado, particularmente no campo da segurança, estão bem traduzidos aqui. Vélez define o brizolismo como um “Socialismo Moreno” cujas pautas principais foram implantar centros públicos de ensino integral, muitas vezes mal localizados, e “beneficiar” (?) a população pobre dos morros proibindo “o acesso da polícia a tais lugares para que se evitasse a repressão contra os humildes”, o que transformou nossos morros “em santuários do crime, onde os marginais começaram a fazer grandes transações de drogas e de contrabando, adquirindo inclusive armamento pesado”.

O professor destinou a oitava e última categoria a abordar o Pensamento Estratégico, traçando o tipo de preocupação que intelectuais brasileiros tiveram em torno da posição geopolítica e territorial do Brasil. Ele resume a sucessão de pensamentos gerais que tivemos acerca disso desde a era da submissão a Portugal, com a discussão do famoso Tratado de Tordesilhas, mas seus destaques contemporâneos são a professora Terezinha de Castro, o general Golbery do Couto e Silva (grande ideólogo do regime militar dos anos 60 e 70), o general Carlos de Meira Mattos e o jornalista e sociólogo Oliveiros Ferreira.

Pensamento político brasileiro contemporâneo, para todo aquele disposto a tatear o pensamento brasileiro e encontrar os autores que interessam à sua formação pessoal, favoráveis ou contrários à sua atitude geral, é capaz de ser um companheiro muito precioso. A grande reflexão que fica após passar os olhos pelas linhas desse ensaio, entretanto, é a seguinte: das categorias elencadas, é lamentável perceber que a influência daquelas consideradas “de esquerda”, do ponto de vista prático, tem sido, há décadas, muito maior.

A social democracia nos governou por dois mandatos; o lulopetismo, por pouco mais de três. A Escola de Frankfurt embasou, juntamente ao Gramscismo, o poderoso e impactante esforço pela hegemonia na nossa intelectualidade. O pensamento estratégico, em boa medida, teve seu alcance degenerado, sobrepujado pela visão mesquinha e ideologicamente enviesada de nossos governos, atrelada às conveniências de seus interesses partidários localizados. A Igreja permanece infestada por teóricos socializantes, não estando imunes a esse risco algumas outras crenças e religiões. As reflexões weberianas sobre o patrimonialismo ainda não levaram a que esse infame legado fosse destronado pelos seus persistentes adversários, aproveitado que foi por todos os nossos caciques políticos e populistas. O liberalismo e o conservadorismo apenas ensaiam a sua virtuosa insurreição.

Também ressalta, porém, a convicção de que está em nosso seio, e no resgate de nossos grandes mestres, dos mais remotos aos mais recentes, a fortaleza que poderá remediar o nosso mal. Inspirados neles – e no próprio professor Vélez -, arregacemos as mangas!

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