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Por que gostar do Estado e odiar políticos?
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Por Flavio Morgenstern, publicado no Instituto Liberal

O Brasil sofre de muitos ismos. De todos os ismos de que já ouvimos falar, o único que nunca resolveu dar as caras de verdade por aqui é o mais criticado: o tal capitalismo, o palavrão mais tabu da língua.

Tão criticado sem nunca ser precisamente definido, o capitalismo é o sistema em que a sociedade se gerencia sozinha, sem um planejamento centralizado de políticos, que possam proibir o povo de fazer algo, ou tomar seu dinheiro para dar a outras pessoas ou empresas que o povo não daria de livre vontade.

Se políticos são tão detestados – no mundo de hoje, de hegemonia de pensamento coitadista e de explicações “sociais”, é uma ofensa pior do que “ladrão” ou “assassino”, já que estes são desculpados pelas circunstâncias – e se sua atuação é sempre pelo mando, pela proibição ou pela obrigação, como é possível que o Brasil (e boa parte do mundo) goste tanto de “soluções” estatais, se o Estado é justamente a instituição com monopólio de força nas mãos de políticos?

É a contradição fundamental do Brasil, que Bruno Garschagen, um dos maiores intelectuais do Brasil e que até agora era apenas conhecido pelos liberais, destrincha no já best-seller “Pare de acreditar no governo: por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado”, recém-lançado pela editora Record, com orelha de nosso Rodrigo Constantino.

O livro já se torna um dos mais fundamentais para se entender o Brasil. Não pela sociologia de gabinete, que sempre tenta explicar qualquer coisa no país pela clave da “desigualdade”, e nem pela psicologia de botequim, enxergando “preconceitos” a serem corrigidos sempre, justamente, pela força estatal, ou pelo expediente de aderir ao Fla-Flu e supor uma luta de classes entre a “elite” e os “líderes dos pobres”. Garschagen trata justamente de tentar entender de onde vem a mentalidade estatista brasileira, trazendo este gene da contradição em seu próprio ser.

A formação da mentalidade brasileira, algo sui generis em todo o mundo, há séculos precisava de um estudo aprofundado. O livro de Garschagen vai à raiz do problema. Ou antes da semente.

É em Portugal de João Pereira Coutinho (prefaciador do livro) que nossos problemas começam. Como diz Coutinho abrindo o livro, “Quando Bruno Garschagen me contatou por causa deste livro, temi que o autor fosse pedir uma indenização”.

Mas a anatomia de uma mentalidade exige fugir de respostas fáceis. E se nossa história começa com Portugal, a culpa dos portugueses se foi desde antes da chegada da família real em 1808 – bem antes das piadas de português perderem a graça.

Sem respostas fáceis, Garschagen destrói a falcatrua de que fomos um Estado antes de sermos, de fato, um país – puerilidade que muitos liberais e conservadores adoram acusar.

Todavia, a influência portuguesa em nos manter sempre na segunda divisão da relevância mundial é destrinchada em detalhes, como a influência da Universidade de Coimbra, uma FFLCH das antigas, em macaquear do Iluminismo que degolava cabeças na França em uma versão tupiniquim.

Tal racionalismo – eufemismo para o vulgo de “concentração de poder para aniquilar tudo o que não esteja num plano de governo para ‘corrigir’ a sociedade” – foi anabolizado na figura nunca estudada do Marquês de Pombal, um jacobino e concentrador de poder contra a “elite” e a “bancada evangélica” daqueles tempos – uma espécie de Jean Wyllys que criou seu próprio Big Brother. É este o modelo de “empreendedor” que existiu às mancheias no Brasil.

Até mesmo ao primeiro documento brasileiro, a carta que o escrivão Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei D. Manuel I para dar as boas novas da nova terra descoberta, a despeito do primitivismo de nossa visão modernista, não era senão um pedido de favor, como sói aos “desbravadores” brasileiros, que sempre preferem as frinchas do poder a concorrer no mercado. No caso, Pero Vaz oferece seus serviços a D. Manuel, um belo carguinho e, de lambuja, um perdão na pena de seu genro. Corporativismo, coitadismo, nepotismo e cargos de confiança sem licitação ou concurso, definitivamente, já existiam no Brasil desde antes de o Brasil ter o nome correto.

(O livro, é claro, não deixa de ter defeitos, como a sacanagem de Bruno Garschagen não explicar o maior mistério de nossa história: como foi que Pero Vaz de Caminha enviou a porcaria da carta? Via Sedex? Telegrama? Pombo-correio? O enigma se torna ainda mais urgente, visto que se descobriu que o envio de um livro do Brasil para Portugal, hoje, 2015 e contando, leva 77 dias. Cabral, em 1500, fez o percurso inverso em 43 dias. Uma caravela de 1500 é mais eficiente do que os Correios brasileiros – o que apenas comprova a tese central de Bruno Garschagen e de todos os liberais. Ainda ficamos na dúvida de como Garschagen enviou seu livro para João Pereira Coutinho.)

Nosso passado iluminista teve o auge no pombalismo, mas o Brasil até hoje não se livrou deste -ismo e de seus mais perversos filhos. Todos eles conjugam de algo em comum, como vamos acompanhando a saga garschageniana por nossa história: o centralismo, a crença na concentração de poder no Estado, para se tornar o grande diretor da sociedade (sempre pelo mando, força, obrigação, proibição e punição). Esta é nossa frequência eterna, nosso sempiterno Vale A Pena Ver De Novo.

E lá se vai mais patrimonialismo e centralização estatal, que só teve um leve período de desenforcamento, deixando a sociedade respirar em paz, com nosso curtíssimo período monarquista, com D. João VI desembarcando com toda a família real nos auspícios do século XIX.

A jogada é sempre tratada como uma imensa covardia por professores de História que transformaram piadas de português em piadas do pavê, que vêem o ato apenas como uma “fuga” das guerras napoleônicas na Europa. Entretanto, é dito que Napoleão, em seu leito de morte, culpou “aquele português” por sua derrota em transformar toda a Europa no primeiro totalitarismo racionalista da modernidade: com a família real no Brasil, não importasse o quanto as legiões napoleônicas guerreassem, nunca atingiriam a sede do poder, mantendo Portugal (e a possibilidade de volta da família real) sempre uma ameaça ao poderio francês.

Nossa monarquia costuma ser vista até nos mais chatos livros de História como um período em que é impossível esconder os avanços, mesmo com as trapalhadas de D. Pedro I (que declamou a Independência, na verdade, com dor de barriga sobre um burro, visto que cavalos não sobem serras). Seu destino foi mesmo voltar a Portugal sem brios, se tornar D. Pedro IV por causa do fuso-horário, e ser lembrado apenas pela independência, que nos deixou sem ganhar em euro, sem passaporte europeu e com nossos times jogando no Campeonato Brasileiro, ao invés da UEFA.

Pedro II, que conseguiu a admiração até de Richard Wagner, adorado por muitos conservadores brasileiros, também não deixa de ser alvo de críticas por Garschagen, que não esconde sua predileção pela monarquia: o rei se interessava mais pela vida intelectual do que pela vida política do país (uma espécie de Bruno Garschagen coroado), mas também não se furtou a crer na “vontade nacional” (central e coincidente com o poder monopolista do Estado, claro) e ser influenciado pelo visconde de Itaboraí, com um discurso tão focado no combate ao “lucro” que nos faz pensar que já existia PT no século XIX.

O alvo de ambos era uma figura curiosíssima e desconhecida da História Revista Pelo MEC Para Transformar Crianças Em Esquerdistas, o barão de Mauá, que tanto fez pelo país, com influência de Adam Smith, e foi levado à falência pela visão intelectualizada de concentração de poder e uso do Estado para destruir empreendimentos privados do rei e do visconde. Mesmo assim, como um liberal sabe fazer, o barão recuperou sua fortuna sozinho, sem se mancomunar com o governo, e morreu em paz com sua consciência.

Um dos pontos mais interessantes do livro, daqueles que dá vontade de reler logo após só pelo prazer com o que se está lendo, é o fim da escravidão, que, tal como na América (de onde tivemos influência), foi feita pela “direita” da época.

Todavia, para quem crê que a história é uma “luta de classes” ou as forças do progresso contra “conservadores” obscurantistas e malvados, as forças em jogo, como tudo na vida, são contraditórias, incoerentes, confusas, multicapilares e não fazem jus a seu nome. Tentar entender “direita” e “esquerda” como se faz hoje, brincando com os sentimentos atrelados a cada palavra, confundirá muitos dos estatistas – progressistas, esquerdistas e mesmo os crentes em soluções mágicas estatais contra estes – que descobrirão como sua visão da história até hoje foi uma piada.

Capítulos de leitura obrigatória são dedicados a um dos fenômenos mais presentes no Brasil, e tão pouco estudado por nossos estudiosos falantes: o positivismo, que tomou o lugar do jacobinismo de Pombal como o novo movimento revolucionário no Brasil (nosso hino, nossa “horrenda bandeira” com seu lema pereba, nossos milicos e nossa péssima educação são as mais positivistas do mundo).

O positivismo de Comte, que grassou no Brasil mais do que na sua Europa natal, tenta ser uma nova forma de gerir toda a sociedade (o que conseguiu no Brasil, com o resultado que vemos ao nosso redor) e ser mesmo um sucedâneo até à religião, tendo como método e resultado, surprise, surprise, naturalmente, mais concentração de poder no Estado, mais dirigismo para “corrigir” a sociedade, com mais ataques à liberdade num planejamento central com resultados tão ou mais horrendos do que as piores obras fálicas de Oscar Niemeyer.

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Mas como queremos adrenalina, pancadaria e violência, nossa história é ainda melhor contada quando chega a república tão odiada por Garschagen. Depois de os militares conquistarem tanto poder na Guerra do Paraguai, e entrarem em conflito com o imperador, é dado o primeiro golpe militar no Brasil.

E mais das nossas contradições aparecem: como os defensores do que é chamado erroneamente de “democracia” no Brasil (vejam os problemas com o termo no meu livro, “Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs, as manifestações que tomaram as ruas do Brasil”) adoram tanto nosso atual sistema e criticam golpes militares, sendo que ele nasce de um?

Com a república, vem, qualquer monarquista sabe, mais centralismo e mais concentração de poder. E tomem-se ministérios, gabinetes, secretarias, órgãos, empresas estatais, cabidões para os protegidos e, claro, muitos impostos para financiar tudo, com muita corrupção e tantos ataques à liberdade que tornam a corrupção quase um mero incidente.

Nossa história então se torna uma confusão de diversas Constituições, golpes, perseguições a adversários, disputas de poder entre dirigentes personalistas (populistas, autoritários, racionalistas, advogados, maçons: ou, mais comumente, tudo isso junto). A influência da maçonaria em nossa política, desde pelo menos D. Pedro II, é merecedora de bons capítulos que revelam seu poder, sua influência e, mais do que tudo, sua falta de organização interna para ser a “seita secreta” que ditaria nossos rumos.

O povo, supostamente “representado” na república (outro termo que não cabe ao nosso sistema), fica cada vez mais acuado pelo poder político e mais alheio a ele – a resultância é que dá título ao livro, com instituições preenchidas por voto, como a Câmara dos Deputados, os partidos, a presidência, tendo avaliação bem pior do que as Forças Armadas, o STF, a imprensa, as pequenas e médias empresas e, segurem-se nas cadeiras, as grandes empresas, que servem muito melhor a população (desconhece-se quem queira eleger o cirurgião de seu coração ou o piloto de seu vôo, a despeito do que a mentalidade estatista diz – a realidade sempre tem voz mais urgente).

O positivismo, em tempos modernistas, se funde de vez com o marxismo, e começa a grande luta no Brasil entre os que querem um Estado forte contra os comunistas (como Júlio de Castilhos, uma das figuras mais perversas de nossa história, até a ditadura brutal de Getúlio Vargas, que matou quase 10 vezes mais do que a ditadura militar em menos tempo), praticamente sempre influenciados pelo positivismo, e aqueles que querem um Estado forte para gerir toda a economia e até mesmo nos deixar dentro da Cortina de Ferro – mas estes apenas subiram ao poder em 2003, e com um banho de loja (ternos Armani, whisky Black Label, vinho Marquês de Riscal e água San Pellegrino) e nomes fantasias que disfarçam sua razão social ao vulgo e aos intelectuais, que acreditam em simplesmente qualquer coisa.

A jornada que Garschagen traça pela história de nosso estatismo, então, se torna eletrizante, com toda sorte de idéias francamente panacas terçando armas pelo Estado forte, sempre com consequências péssimas, para no próximo round os dois lados lutarem de novo e garantirem que dessa vez vai – e sempre bem assessorados por intelectuais, relações públicas, artistas, empresários e jornalistas dispostos a defendê-los e garantir que estão certos, apesar de toda a realidade.

Quem continua sem voz, durante toda a nossa história, não é senão o tal capitalismo, sempre culpado de todos os nossos problemas, mesmo sem nunca ter fincado pé por estas bandas.

Fosse sob os brutais anos de Getúlio Vargas no poder, que atrelou o personalismo e o populismo aos –ismos perversos, fosse sob o dirigismo de gastos de Juscelino Kubitschek, fosse sob o nacionalismo chumbrega e interessantemente esquisito de Jânio Quadros e, claro, fosse sob a terrível ditadura militar com seu legado que dividiu as mentalidades nacionais em estatolatria militarista de ordem e bons costumes e estatolatria comunista de uso progressista do poder de mando estatal, o Brasil não teve vestígio do capitalismo, do liberalismo (não confundir com o “neoliberalismo” dirigista e de rent seeking dos anos FHC) ou da mera liberdade individual e econômica do brasileiro.

Se péssima história e terríveis governos geram os livros mais excelentes (pergunte a Aleksandr Solzhenitsyn), o melhor, é claro, fica para o fim. Mesmo com as duas ditaduras, nada chega aos pés do desastre Sir Ney com inflação de 88.000% (sic) ao ano, do furacão Collor com confisco de poupanças (e uma multidão de falências, suicídios e famílias desfeitas) e do que conseguiu ser pior do que ambos juntos (ambos juntos, aliás, fizeram parte de seu governo): o PT no poder.

Se Itamar e FHC só merecem alguma ressalva cabisbaixa por privatizarem contra as suas próprias vontades (e mal), nem por isto o estatismo deixou de avançar em suas administrações: ambos deixaram o Estado maior do que pegaram.

Contudo, é claro que o pior estava por vir – e o melhor do livro, claro, fica nas páginas finais. Não só por vermos como o estatismo vai ganhando contornos e conteúdos cada vez mais ridículos quanto mais é aceito hegemonicamente pela população – com tudo tão milimetricamente definido por intelectuais, jornalistas, professores e demais vozes palpitantes na sociedade – mas sobretudo porque esta verbosidade vai cada vez mais se tornando mera repetição de desculpas, cada vez mais na defensiva (o que nos dá alguma esperança). Tudo o que era ruim antes (fosse perseguição a adversários, jornais comprados, censura ou até mesmo privatização) se torna programa salvador nas mãos do PT.

Garschagen ainda termina demolindo também a esparrela das soluções milagreiras de sempre, como o povo que só vai se emancipar com “educação” – desculpa, curiosamente, positivista (ou seja, parte do problema) – sem nunca perceber que uma educação planificada pelo Estado pode servir para qualquer coisa, exceto para nos livrar das algemas estatais.

Muitos livros tentaram explicar o Brasil e sua política, mas poucos foram tão a fundo (e num livro tão agradável, com bom humor e fácil de ler) em entender a mentalidade que gera a política brasileira como Bruno Garschagen.

Um livro obrigatório para entender não apenas a história de nossa política, mas a paixão do brasileiro pela mão que aperta a sua garganta.

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