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Considerações sobre princípios ameaçados pelo justiçamento das redes
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Por Gabriel Wilhelms, publicado pelo Instituto Liberal

Não vou proceder aqui a nenhuma análise do caso Mariana Ferrer, o qual dispensa apresentações, seja para não fazer coro a esse hábito beligerante de tentar tornar as redes sociais aptas a revisarem sentenças judiciais, seja por acreditar que o assunto é de competência da justiça, mesmo porque ainda não houve o trânsito em julgado do processo. Quero falar aqui sobre outra coisa, sobre o teor de alguns argumentos apresentados dentro de debate, de baixíssimo nível, diga-se, que se seguiu à repercussão do caso e do que representariam para o estado de Direito se levados à última consequência.

Antes de tudo, digo o óbvio: crimes sexuais são terríveis, devem ser rechaçados e severamente punidos, algo defendido por toda e qualquer pessoa decente, independente das opiniões políticas que tenha. É justamente pela severidade do crime e da punição que é preciso sempre se ater aos fatos e às evidências, como prescreve aquele princípio que alguns gostariam de tornar anacrônico chamado presunção de inocência. Repito: não procedo a análise do caso citado, falo de princípios gerais, mesmo porque a lei é impessoal; não existe uma para o João e outra para o Pedro, existe uma para todos. Ademais, sabemos que o ônus da prova deve recair sobre quem faz a acusação, bem como não se condena alguém sem provas.

Ocorre que muitos dos que tomam um partido absolutista da parte que faz a acusação em crimes como esse tomam como uma máxima que não é possível tecer nenhum tipo de questionamento, do contrário você estaria duvidando da palavra da vítima. Se você aponta uma eventual escassez ou ausência de provas, você está duvidando da palavra da vítima. Se você pede cautela e argumenta pela necessidade de se aguardar a decisão judicial, você duvida da palavra da vítima e defende estuprador. Se você faz uma mera exposição dos fatos ou dos argumentos de uma sentença, por exemplo, você está defendendo estuprador e duvidando da palavra da vítima. Apliquemos essa lógica em nosso sistema judicial e mataremos a presunção da inocência – e não se enganem: matando-se o princípio para um tipo de crime, abrem-se as portas para o matar para todos. Quem gostaria de viver em uma sociedade em que alguém pode ser acusado e condenado sem provas, pois não é admitido “duvidar” da palavra da vítima?

Isso nada tem a ver com culpar a vítima. O único responsável por um estupro é o estuprador, nunca a vítima. Qualquer tentativa de justificar um estupro por um suposto comportamento errante da vítima é coisa de bárbaros, afinal, nada isenta a responsabilidade direta do estuprador, mas essa responsabilidade deve ser comprovada. Há quem diga que assim proceder inibe a coragem de outras mulheres denunciarem seus estupradores. É o mesmo argumento usado pelas feministas que se opõem à punição de falsas comunicações de estupro, como se a lei devesse deixar de proteger e punir o dano particular – o estigma de estuprador pode destruir a vida e carreira de alguém – para proteger um pretenso dano coletivo. Na verdade, agindo dessa forma, alimentam justamente o que dizem combater. Quem defende afastar a presunção de inocência cedo ou tarde pode acabar vítima das evidências e, com um pretenso culpado se provando inocente, ver invalidada uma retórica absolutista e punitivista. É do interesse das vítimas de estupro que estupradores sejam punidos com base em evidências, de modo que reste inquestionável o abuso que sofreram. É da espetacularização e da militância que a todo tempo diz que as mulheres não encontram apoio no sistema judicial, por este ter a presunção de inocência como base, que deriva o temor de muitas mulheres em realizarem a denúncia.

O segundo argumento é tão temerário quanto: é o apelo à identidade. Não importa o mérito de seu argumento; se você é homem, você sequer deveria opinar sobre estupro. Convém perguntar: o que pretendem na prática os que defendem essa lógica? Nunca respondem, mas podemos como exercício imaginar como seria um sistema de leis baseado nessa visão. Se é lícito que apenas mulheres se debrucem e tratem de qualquer questão relacionada a estupro – ignorando o fato de que, embora em menor escala, homens também podem ser e são estuprados –, então podemos imaginar um legislativo em que apenas mulheres pudessem votar e aprovar crimes de natureza sexual, um Ministério Público em que apenas promotoras mulheres pudessem atuar em casos do gênero, um Judiciário em que apenas magistradas pudessem julgar casos de estupro, uma polícia em que apenas mulheres pudessem investigar tais casos, e assim por diante. Consideram o exemplo ridículo? Pois é, mas é o desdobramento lógico do argumento de apelo à identidade apresentado. Ora, é evidente que é sempre preferível que uma vítima de estupro, ao chegar em uma delegacia para dar seu depoimento, seja acolhida por uma mulher, não por suspeição quanto aos policiais homens, mas por uma questão de melhor conforto e acolhimento, mas disso não se conclui que só mulheres possam atuar no caso ou na formulação das leis que o subsidiem. Seria algo como permitir que apenas negros julgassem casos de racismo – ignorando também o fato de que não só eles sofrem racismo.

Na verdade, tal raciocínio acabaria por violar também o princípio da impessoalidade, que tanto devemos nos esforçar para preservar. Existe uma razão pela qual um magistrado não pode julgar um caso de um parente próximo. O sistema judicial deve ser sempre construído para ser guiado pelos fatos, não pelas emoções, mas o que propõem os que apelam à identidade é justamente o oposto: que a lei seja formulada e aplicada por quem entendem que teria mais ligação emocional e, portanto, menor impessoalidade e maior propensão a ignorar os fatos nus e crus.

Outro argumento é a suspeição, por vezes prévia, em relação à justiça de uma forma geral. Esse argumento, e com argumento quero dizer teoria de conspiração, tem sido recorrentemente apresentado por militantes identitários em qualquer caso que acreditem dizer respeito a minorias. Dizem eles que tudo, inclusive e principalmente o sistema judicial, está impregnado com machismo estrutural, racismo estrutural, homofobia estrutural e por aí vai. Tal suspeição torna-se ainda maior quando quem senta no banco dos réus é alguém rico. Em casos assim é comum, por um lado, que a turba popular decrete a culpa antecipada, e que por outro decrete que a eventual sentença foi ou será comprada. No caso de uma absolvição não restam dúvidas para estes conspiradores: o réu comprou todos, do laboratório, passando pelo Ministério Público até o juiz. Para acusações tão sérias, que teriam como efeito descredibilizar instituições, não apresentam prova alguma; pelo contrário, como bons conspiradores, sua prova é justamente a ausência de provas; terminam por empinar o nariz e agir como se você fosse o ingênuo(a) da história. Curioso, aliás, como espectros políticos opostos, mas equivalentes em radicalismo, são igualmente suscetíveis a teorias conspiratórias, apesar de sempre se julgarem iluminados e arautos da verdade.

Ora, não defendo com isso uma infalibilidade da justiça, uma vez que é evidente que esta pode sim falhar, mas ocorre que tal fato, a susceptibilidade a erros, é reconhecido e incorporado no próprio sistema mediante a possibilidade de recursos. Fossem os magistrados infalíveis, suas decisões não poderiam ser revistas.

Cabe perguntar aqui novamente: o que propõem aqueles que demonizam por completo os tribunais? Pretendem proceder a linchamentos em praça pública? Não duvido; seria, aliás, mais uma semelhança entre os “opostos”. Façamos novamente um exercício sobre os desdobramentos dessa lógica. Sem me estender em minúcias contratualistas, sabemos que um conjunto de leis elaboradas por um ou mais corpos legislativos e um sistema judicial que com base nele opere são algo fundamental para a vida em sociedade, sendo a alternativa a anarquia. Para que isso aconteça, é necessário que, ainda que com críticas e descontentamentos pontuais, as pessoas tenham confiança no funcionamento destas instituições. Sabemos que na prática essa confiança pode variar em grau, mas confiança há, do contrário ninguém recorreria a elas.

Agora imaginemos um cenário hipotético em que todos perdessem a “fé” nas instituições, que as considerassem corrompidas e/ou impregnadas dos mais severos preconceitos que impedissem a sua necessária imparcialidade. Qual seria a consequência? Se a alternativa à ausência das leis e das instituições que as reforce é a anarquia, a completa perda de confiança produziria o mesmo efeito; mas crimes acontecem. Iriam as pessoas simplesmente ignorá-los e escolher suportar os danos? Não, buscariam a justiça com as próprias mãos. Os que não a pudessem fazer por conta própria se veriam compelidos a sustentar milícias que alegariam agir em seu interesse ou simplesmente seriam dominados por elas. Em suma, imperaria a lei do mais forte e o arbítrio seria a regra. Como exercício hipotético, trata-se, obviamente, de um exagero, mas é a consequência lógica da suspeição levada a suas últimas circunstâncias. Não é de se surpreender que os apologistas de tais pautas anárquicas sejam também aqueles mais propensos a romantizar a “justiça” de facções criminosas e a suposta superioridade de organizações mafiosas sobre o Estado. Para eles, a presunção de inocência é uma falha do sistema; o certo mesmo é incendiar os desafetos dentro de pneus.

O último ponto que quero analisar, o qual deixei por último por coroar todos os demais, é o problema da análise jurídica jogada para a galera. Este é um dos traços cujos malefícios se fazem notar mais diretamente. Quando estamos falando dos poderes políticos constituídos, é natural que as pessoas se sintam no direito de demandar e cobrar coisas dos membros de tais poderes. Reconhece-se a legitimidade e mesmo a importância de as pessoas cobrarem as pautas que melhor aprouverem de políticos eleitos ou que pretendem se eleger/reeleger. O protesto pacífico, por exemplo, é um instrumento legítimo nesse sentido. Porém, quando estamos falando do poder Judiciário, a coisa muda de figura. Ora, não é que as pessoas não demandem justiça e não possam se manifestar livremente, mas a forma como este poder deve responder à turba popular é muito diferente da por que respondem o Legislativo e o Executivo.

Antes de tudo, os magistrados não possuem cargos eletivos, bem como a sua estabilidade, nesse caso, é um instrumento que tenta assegurar a imparcialidade. Um juiz que precisasse a todo tempo garantir a continuidade no cargo por meio do voto se comportaria como um político, não como um magistrado; tenderia a agradar às opiniões correntes, por mais equivocadas que fossem, ao invés de se ater à lei como instrumento. Se um deputado deve saber escutar e até mesmo agir de acordo com a vontade de seus eleitores – muito embora não haja nem possa haver vinculação obrigatória, sob risco de ferir a natureza da representatividade -, um magistrado, especialmente na formulação de sentenças criminais, deve se fazer de surdo para a gritaria que possa emanar das redes ou das ruas.

Alguém pode arguir que tal visão da magistratura é insensível, sem empatia, que a justiça deve olhar não só para as leis, mas para o que emana da sociedade, quem sabe até mesmo deixando as leis em segundo plano ou as moldando e interpretando de forma “criativa” para enquadrá-las na vontade popular. Os magistrados que pensam assim inevitavelmente acabam por se devotar ao ativismo judicial e, embora distribuam acenos, usualmente progressistas, agem na verdade como déspotas, fazendo tarefa que não lhes cabe – legislar -, roubando assim do povo o direito de determinar aqueles que de fato têm esse poder. Além disso, trata-se de uma mentira dizer que não há empatia ao se proceder dessa forma. A formulação das leis é o momento onde as diferentes vozes e interesses da sociedade podem tentar se fazer ouvir; não quer dizer, é claro, que sempre conseguirão isso, mas leis podem ser modificadas; não quer dizer também que as leis sejam todas perfeitas, mas elas podem ser aprimoradas; não quer dizer que cada legislador em particular seja dotado de empatia, mas isso parece ser mais verdade quando estamos falando de uma maioria legislativa, necessária para a aprovação de uma lei, maioria essa que, especialmente nos tipos de crime tratados no artigo, costuma sim ser guiada por empatia.

Estando as leis formuladas e guardadas as situações em que podem ser interpretadas em termos de constitucionalidade por quem tem tal competência, não cabe ao magistrado afastar a sua aplicação por pressão popular – tal pressão lhe deve ser irrelevante. Será na aplicação da lei que a empatia, emanada do corpo legislativo que a elaborou e do executivo que a sancionou – se for o caso -, se fará notar. Isso não significa que todos ficarão felizes e, em uma sentença criminal, certamente uma das partes não ficará, mas a que não ficar contará com os meios para recorrer – isso porque houve “sensibilidade” suficiente do legislador para reconhecer o direito de os descontentes requerem uma nova análise.

Procedamos novamente a mais um exercício: e se a justiça de fato passasse a operar com base na voz das ruas e das redes? O caso citado no início do artigo, alimentado por uma fake news ardilosamente divulgada pelo The Intercept Brasil – a sentença não foi baseada em uma argumentação de “estupro culposo”, bem como o vídeo foi editado, dando a entender que não houve intervenção do magistrado diante dos ataques proferidos pelo advogado do réu -, motivou até mesmo uma nota de repúdio do Senado. O Senado, câmara alta do nosso sistema bicameral, é um órgão político, mas e se esse tipo de pressão reverberasse também em órgãos judiciais, ou se a pressão oriunda de instituições como esta exercessem de fato impacto na decisão daqueles que proferem sentenças? A câmara alta do país não teve pudor em afirmar que os envolvidos no caso distorceram “fatos de um crime de estupro”, fazendo coro ao justiçamento das redes, se afastando da prudência que se espera de tal casa e fazendo juízo de valor sobre a qual cabe apenas à justiça fazer. Se os tribunais resolvessem proceder dessa forma, sucumbindo à pressão de protestos de todos os tipos, teríamos novamente violado o estado de Direito e a presunção de inocência. Não poderia haver maior aviltamento do Judiciário e seus membros, uma vez que delegariam às redes e a todos aqueles inflamados com opiniões emocionais e parciais o poder de revisar sentenças tecnicamente elaboradoras e para as quais há possibilidade de recurso.

O que devemos esperar em toda e qualquer decisão judicial, especialmente nas de caráter criminal, que podem colocar alguém por anos atrás das grades, é que sejam baseadas nas leis e nos fatos. Para bem cumprir o seu papel e ser digna do seu nome, a justiça deve se fazer de cega e surda para os clamores populares, por mais enérgicos que sejam.

Ao longo do artigo não entrei no mérito de caso algum, o que, repito, é tarefa para a justiça. Tratei apenas de princípios, o que não fiz como jurista, coisa que não sou. Defendi a importância da presunção de inocência, da impessoalidade das leis, bem como rejeitei teorias de conspiração que, depondo contra a credibilidade das instituições, deixariam as vítimas com sentimento de desamparo, e terminei por defender a necessidade de decisões judiciais tomadas com base em critérios técnicos. Todos estes são princípios simples de se entender e defendidos por todos aqueles que defendem a democracia liberal e o estado de Direito. É de se supor que tais princípios deveriam encontrar acolhida entre progressistas, mas é curioso, embora não surpreendente, que uma parcela mais radical destes, mormente os identitários, sequer ruboriza ao defender o seu “picotamento” e a aplicação de um tipo de direito digno de estados de exceção, ao mesmo tempo em que adjetivam da forma mais vil os moderados, como se estes fossem os radicais.

Fontes: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/145326

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