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Coringa: ressentimento, niilismo e faísca revolucionária
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I started a joke which started the whole world crying
But I didn't see that the joke was on me oh no
I started to cry which started the whole world laughing
Oh If I'd only seen that the joke was on me

Finalmente assisti "Coringa", com Joaquin Phoenix. Filmaço. E justifica seu rótulo de melhor ator vivo hoje. Daniel Day-Lewis talvez seja páreo, mas não vejo nenhum outro no mesmo patamar.

Minha resenha vai puxar para o viés político, naturalmente. Cada um enxerga com foco no seu maior interesse. E haverá spoiler, pois não há outra maneira de comentar o filme. Quem ainda não viu, portanto, e deseja vê-lo, salve o texto para ler depois.

Coringa é uma história perturbadora de como um doente mental se perde totalmente na vida, cedendo aos impulsos violentos, e com isso cria um efeito mimético numa sociedade apodrecida, infestada por "ratos gigantes", metáfora evidente da degradação dos valores morais.

Abusado na infância pelos namorados da mãe, ele se tornou um adulto "loser", infantilizado, trabalhando como palhaço em hospitais infantis e vivendo com sua mãe, ainda uma criança crescida. Frequentava uma assistente social que fazia perguntas burocráticas. Sentia-se solitário, invisível, infeliz.

Tornou-se adulto pela primeira vez quando cometeu seu primeiro ato de violência. Colocou para fora todo seu ressentimento, e isso lhe deu uma sensação de poder. Tanto que foi a primeira vez em que "seduziu" uma mulher, ainda que em seu delírio. Agora ele se via como um daqueles homens que sua mãe gostava, violento, agressivo. Em vez de tragédia, passou a considerar uma comédia toda sua desgraça pessoal.

Mas a coisa saiu do controle. Todos temos um lado sombrio, ruim, que precisa ser domesticado, controlado, civilizado. Aquele jovem problemático precisava encontrar um sentido para dar à sua vida complicada. Em vez disso, ele encontrou apenas o vazio, e respondeu com violência. O niilismo, a total ausência de propósito na vida, é o alimento mais perigoso para uma alma perturbada: o sujeito não tem mais nada a perder.

E aí está o mais interessante do ponto de vista político: como um completo louco desses, um doente mental, acaba seduzindo uma legião de seguidores, acendendo uma faísca revolucionária. O Coringa virou um símbolo da revolta contra o "sistema", contra os mais ricos, que ignoram o povo, o homem comum, que sofre naquele ambiente de miséria.

A máscara garante a cada um o anonimato e a sensação de pertencimento a algo maior, um movimento coletivista. O ressentimento alimenta o clima de revolta. O Coringa dá a senha: é hora de reagir, de destruir, de atacar. Diluídos na massa amorfa, cada "palhaço" se vinga de seus fracassos pessoais.

Gustave Le Bon, em seu livro sobre a psicologia das multidões, escreveu: “Uma massa é como um selvagem; não está preparada para admitir que algo possa ficar entre seu desejo e a realização deste desejo. Ela forma um único ser e fica sujeita à lei de unidade mental das massas. Como tudo pertence ao campo dos sentimentos, o mais eminente dos homens dificilmente supera o padrão dos indivíduos mais ordinários. Eles não podem nunca realizar atos que demandem elevado grau de inteligência. Em massas, é a estupidez, não a inteligência que é acumulada. O sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos desaparece completamente. Todos os sentimentos e atos são contagiosos. O homem desce diversos degraus na escada da civilização. Isoladamente, ele pode ser um indivíduo; na massa, ele é um bárbaro, isto é, uma criatura agindo por instinto”.

Foi esse movimento que, sem intenção, o Coringa despertou. Ele era apenas um maluco que sentiu prazer na violência e em ter algum reconhecimento na vida, ainda que por meio dessa violência. O restante viu ali a oportunidade para dar vazão aos próprios ressentimentos. Nada muito diferente do que os jacobinos na revolução francesa, que chegaram a esquartejar a rainha e espalhar suas partes íntimas pela cidade. Uma turba ensandecida, liderada por doidos. A desculpa é sempre algum manto ideológico qualquer, mas a razão primária é mesmo servir aos instintos bestiais. Destruir por destruir, matar por matar.

E é isso que mais perturba no filme: podemos nos ver aderindo àquela turba revoltada, pois todos temos nossas angústias e revoltas, e nosso lado mau, selvagem. O tecido social que preserva a civilização não é tão forte como gostamos de crer, e jamais podemos tomar como garantida sua manutenção. Ela exige esforço contínuo, dedicação, com cada adulto responsável no papel de transmitir o legado dessa civilização, passar a tocha dos valores morais para as novas gerações.

Mas os niilistas existem. Os malucos existem. Os ressentidos existem também, aos montes. E acabam influenciados pelos niilistas e malucos, que querem ver o circo pegar fogo, os pilares da civilização ruírem para que ela venha abaixo. "Dê vazão aos seus sentimentos genuínos, sem freios", diz a voz do diabo, sabendo que o instinto é muitas vezes bestial.

Numa sociedade normal, saudável, Coringa seria apenas um doido isolado, digno de alguma pena e afastado do convívio social, pois está para além de qualquer redenção e, por isso mesmo, representa enorme perigo. Já numa sociedade doente ele vira um ícone de um movimento, um líder a ser seguido, um exemplo aos demais, ansiosos para extrapolar sua revolta toda com o mundo injusto.

Não há certo ou errado, normal ou anormal, doente mental ou gente saudável, alegam os relativistas. É a voz do diabo uma vez mais, tentando nivelar por baixo, buscando esgarçar o tecido social. E não pensem que isso é coisa só de ficção. O Coringa é um caso extremo, sem dúvida. Mas pensem em Foucault, para dar um exemplo, um doido movido por pura pulsão de morte, que virou guru de toda uma geração perdida.

A piada niilista não tem a menor graça.

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