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Caetano Veloso e a esquerda crítica
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Caetano Veloso, em sua coluna de hoje no GLOBO, traz algumas reminiscências sobre o nebuloso período do golpe (ou contragolpe, dependendo do prisma) militar de 1964. Mostra-se aberto ao reconhecimento de que a esquerda, naquela época, não lutava por democracia. Vou tecer alguns comentários com base em seu texto:

Na noite de 31 de março para primeiro de abril de 1964 eu estava numa reunião para preparar os cursos do método de alfabetização Paulo Freire, num salão da faculdade de Economia da UFBA. Uns colegas chegaram de fora dizendo que parássemos tudo e voltássemos para nossas casas: um golpe estava em curso. Eles estavam muito bem informados e pareciam muito pessimistas. À minha pergunta sobre se não haveria resistência um deles disse que não acreditava e acrescentou que achava que os militares de direita (sim, é preciso lembrar que não o eram — nem o são — todos) tomariam o poder e ficariam lá por uns dez anos. Hoje a previsão parecerá otimista, já que o governo militar durou o dobro disso.

O método de alfabetização Paulo Freire já era um instrumento comunista, infelizmente responsável pela desgraça de muita gente nesse país (e no mundo). Freire levou o marxismo para dentro da sala de aula, com a visão de opressores e oprimidos, uma luta de classes sem sentido que ajudou a criar o quadro de vitimização tão prejudicial à meritocracia. Isso já dá uma ideia do que a esquerda queria naquela época.

Caetano fala também de militares de direita, mas confesso que não aprecio muito o termo. Sim, eram anticomunistas, mas não sei até que ponto isso basta para classificá-los como direita. Há que se qualificar melhor o termo para evitar confusão. Se Reagan e Thatcher eram de direita, isso coloca Geisel no mesmo espectro político, um nacional-desenvolvimentista que adorava a intervenção do estado na economia? Dilma se parece mais com Geisel do que este com Thatcher.

Posso adiantar que nunca senti aprovação íntima ao governo militar que veio em seguida ao golpe civil e fardado de março/abril. Ao contrário, a repulsa pelo Estado autoritário, a simpatia pelos ideais de justiça social e, finalmente, minha prisão e exílio (uma experiência que quase não fui capaz de suportar) me predispuseram a odiar todas as feições daqueles anos, tendo de fazer sempre grande esforço para entender seu significado — e pesar seu valor — de modo mais corajosamente realista.  

É compreensível a repulsa por qualquer tipo de regime autoritário e de censura. Mas é igualmente importante compreender que a busca pela “justiça social”, naqueles anos, não era exatamente isso, ou seja, uma luta por melhores condições e oportunidades para os mais pobres, mas sim um ideal comunista mesmo, que olhava para Cuba com admiração e como grande modelo a ser seguido. O que não se pode negar é que o Brasil corria risco, sim, de ter uma ditadura infinitamente pior caso os jovens comunistas lograssem êxito em sua empreitada. E Caetano indiretamente reconhece isso:

O que não pude deixar de contar a quem me lesse é que vi que a ilusão de que o povo brasileiro se levantaria pelo igualitarismo era nada mais que uma ilusão. Meus amigos da esquerda em 1963 não estavam menos enganados do que os promotores da chamada “intentona” de 1935. Somos um povo que, tal como nas outras nações latino-americanas, precisou de líderes patriarcais e soube, no máximo, animá-los a tomar medidas populistas que fizessem andar os direitos dos trabalhadores, tudo isso num diapasão nitidamente conservador. Ou que pode ser chamado de conservador se apreciado por um ouvido esquerdista.

O que pode ser chamado de conservador para agradar a um esquerdista, eis a verdade. Não há nada semelhante ao conservadorismo britânico, por exemplo, nesse regime militar ou nesses líderes patriarcais e populistas. O conservador de verdade é cético em relação ao poder estatal, desconfia de líderes carismáticos, rejeita a concentração de poder.

O Brasil, infelizmente, ainda é refém de um debate político-ideológico muito pobre, com esquerda de um lado, representando todos que lutam por “justiça social”, e direita conservadora do outro, representando todos que querem impor de forma autoritária seus valores “reacionários”. Precisamos evoluir, sair dessa armadilha. Creio que Caetano concorda, mas mostra alguma ingenuidade ao ignorar o risco de retrocesso por conta justamente da esquerda. Diz ele, sobre uma carta que recebeu de um anticomunista preocupado:

Fiquei tocado. Ele conta que há agora o temor de nova ameaça comunista. Sei que não há. E não quero que haja uma reação como se houvesse. Nada de querer interromper esse primeiro período respeitavelmente longo de democracia em nossa história. Sinto que mudanças estão em curso. Acho que o Quinto Império de Vieira me dá mais luz para entendê-las do que a ditadura do proletariado.

Sabe mesmo que não há? Não tenho tanta certeza. Para falar a verdade, tenho bastante convicção do contrário. Ora, será que o Brasil é tão especial assim que não corre risco de ter o mesmo destino da Argentina, um país que tinha ampla classe média e instituições republicanas relativamente sólidas? Ou mesmo a Venezuela, cuja democracia não passa de um simulacro e hoje já é um país sob o socialismo autoritário, dominado inclusive por agentes cubanos.

Caetano ignora esse risco? Não sabe que o PT sonha exatamente com esse destino? Não sabe que o aparelhamento da máquina estatal tem sido avassalador? Não sabe que todo começo de novo governo o PT tenta avançar sobre a imprensa (ainda) independente, e que esse talvez seja o último grande obstáculo para seu projeto autoritário? Imaginem como estaria o país hoje se o “controle social da mídia” tivesse passado, e o povo estivesse totalmente às escuras sobre todos os escândalos que vimos nos últimos anos…

Eu também não quero que haja reação militar como se já estivéssemos sob o comunismo. Somos uma democracia, ainda que suja, pois o PT compra votos de forma escancarada, apela para o uso e abuso da máquina estatal, do populismo, da demagogia, da intimidação. Mas enquanto for possível combater os petistas nas urnas (sob suspeita por muito especialista), esse tem de ser o caminho adotado.

Por essas e outras sempre fui totalmente contra os black blocs, ao contrário do próprio Caetano, que posou mascarado como se fosse um deles. Entendo que seus métodos, sem falar suas finalidades, são incompatíveis com o regime democrático e o estado de direito. Aqui Caetano mostra uma grande incoerência, e se está arrependido de ter endossado os black blocs, deveria falar isso abertamente, o que seria louvável (todos podem errar, mas é nobre reconhecer os erros).

O meu principal ponto é que, tanto hoje como em 1964, a reação muitas vezes autoritária de milhões de brasileiros, não das “elites”, mas da classe média mesmo, foi justamente isso: uma reação. Ou seja, não era e não é uma intenção arquitetada de golpe para tomar o poder, e sim um medo legítimo de a esquerda radical destruir o Brasil, como vem tentando há décadas.

A classe média, na década de 1960, clamou por ordem, e hoje muitos se mostram preocupados com a desordem (black blocs e criminalidade) e o risco de o Brasil ser a próxima Argentina, nesse asqueroso projeto bolivariano em curso na América Latina, com gente jurássica que consegue defender o socialismo em pleno século 21! Roberto Campos resumiu bem o clima naquela época:

É sumamente melancólico – porém não irrealista – admitir-se que no albor dos anos 60 este grande país não tinha senão duas miseráveis opções: ‘anos de chumbo’ ou ‘rios de sangue’… 

Espero, de verdade, que não cheguemos a esse patamar atualmente. Não faço coro àqueles que já clamam por intervenção militar. Acho até temerário fazer isso enquanto ainda for possível combater o PT dentro da própria democracia. Mas creio que a postura negligente de Caetano, como a de tantos outros, não ajuda. Adotar um discurso de que o Brasil não corre o menor risco de seguir os rumos bolivarianos, depois de tudo que o PT já mostrou ser capaz de fazer, parece-me mais do que ingenuidade; parece-me irresponsável.

E para evitar isso, seria maravilhoso se a própria esquerda decente, democrata, civilizada e crítica acordasse e ajudasse aqueles liberais e conservadores (de boa estirpe) no combate ao autoritarismo petista. Caetano fecha seu artigo dando alguma esperança nesse sentido, inclusive me citando:

Prefiro dizer agora, como tropicalista, que o eurocentrismo racista de Marx e Engels comentado por Rodrigo Constantino merece minha atenção. E talvez a da esquerda crítica.

Espero que sim! Meu esforço tem sido justamente no sentido de mostrar para os mais leigos e também para a esquerda crítica o que a esquerda radical efetivamente deseja. Ela nunca foi democrata, jamais lutou pela liberdade ou por “justiça social”. Marxistas odeiam a democracia, o contraditório, o debate civilizado. Aliás, odeiam, odeiam e odeiam: são movidos por ódio, puro ódio, ressentimento, rancor. O marxismo é incompatível com a democracia, tanto que não há um único exemplo que possam mostrar de sucesso na implantação de suas utopias igualitárias.

Adoradores de Che Guevara representam a grande ameaça a nossa democracia jovem, não militares (onde estão?) ou carolas que fazem marchas esvaziadas em nome da família. Seria muito importante que a esquerda crítica se desse conta disso, e se unisse aos que desejam, acima de tudo, evitar essa tragédia que é o socialismo. Caetano teria o meu respeito se tentasse liderar a parte artística da esquerda nessa direção. Terá de comprar briga com seu amigo Chico Buarque e tantos outros, que ainda olham para a ilha-presídio caribenha com admiração…

Rodrigo Constantino

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