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Politização do STF leva a uma “tirania da maioria”
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Antonin Scalia foi um dos grandes justices que a Suprema Corte americana teve, e ele defendeu como poucos o "originalismo", ou seja, a ideia de que a função do juiz é aplicar o que diz a lei, não o que ele gostaria que ela dissesse.

Era uma oposição clara ao conceito de "organismo vivo" para a Constituição, ou seja, a ideia de que a Carta Magna "evolui" com o tempo. Scalia não negava as mudanças com o tempo, e tampouco considerava o texto original perfeito.

O que ele criticava era a tentativa de um juiz legislar, impondo sua visão de mundo ao que está escrito, em vez de seguir a lei de forma objetiva. Ele achava que isso abriria as portas do inferno para os riscos daquilo que Tocqueville chamou de "tirania da maioria".

Ou seja, a politização do Supremo faria com que as minorias perdessem sua proteção constitucional, já que a tendência seria, cada vez mais, a de casar a Constituição com a "voz das ruas".

Nem tudo que consta na Constituição é bom, mas os seus criadores sabiam disso, e por essa razão incluíram especificamente a possibilidade de emendas constitucionais. Se o texto é ruim, confuso ou se torna inadequado para eras modernas, há o mecanismo correto para altera-lo: por meio do Legislativo, já que é a "casa do povo".

Mas se a Constituição não significa aquilo que ela objetivamente diz, e sim o que ela deveria dizer, então alguém terá de decidir a questão do que ela deveria significar. E numa sociedade democrática esse alguém é a maioria. As garantias individuais previstas na Constituição seriam colocadas sob a supervisão e controle daquilo que ela tem justamente a missão de restringir: a maioria.

E uma vez que se abre o precedente, fica cada vez mais difícil conter a pressão popular. Aqueles que defendem a tese da "Constituição viva" acreditam que ela sempre irá evoluir na direção de mais liberdade individual, o que é claramente uma falácia. Basta pensar nos "progressistas" lutando para que o governo possa confiscar armas dos cidadãos, o que é totalmente inconstitucional nos Estados Unidos. Eles pretendem adaptar o texto aos seus desejos, e sabem que não teriam condições de fazê-lo pelas vias legais, ou seja, pelo Legislativo.

Ao mesmo tempo, Scalia estava ciente de que a Suprema Corte não é capaz, sozinha, de defender esse sentido originalista. Uma sociedade que não compreende a importância disso dificilmente preservaria tal mecanismo de proteção individual. A Constituição sobrevive, em outras palavras, somente enquanto durar o entendimento e o respeito por ela.

Um juiz que nunca decide contra sua vontade não é um bom juiz, portanto. Se ele está deixando seus anseios pessoais, sua ideologia, falar mais alto do que o texto da lei, então é porque não respeita sua missão, seu papel de servidor e guardião da lei. O ativismo judicial é o maior perigo existente para o estado de direito.

Um juiz honesto que aplica as proteções constitucionais que protegem as minorias das maiorias não pode esperar ser muito querido ou popular. Mas se ele seguir sempre o mesmo processo, demonstrando sua real imparcialidade, ele será ao menos respeitado. O governo é das leis, não dos homens. Cabe ao juiz preservar isso para evitar o arbítrio.

A escolha dos juízes da Suprema Corte é um processo político, o que gera enorme risco de politização da Corte. Mas enquanto o "originalismo" foi mainstream, políticos de diferentes partidos levavam mais em conta o notório saber jurídico dos candidatos e sua idoneidade. Com o tempo, à medida que a ideia de Constituição como "organismo vivo" foi ganhando corpo, a escolha passou a ser bem mais partidária.

Se o juiz é uma espécie de legislador a interpretar o texto ao seu bem prazer, então claro que cada presidente vai apontar candidatos alinhados à sua visão de mundo, independentemente das qualidades intrínsecas ao bom magistrado. O processo se tornou, portanto, um mini plebiscito sobre o que cada um deseja que seja o sentido da Constituição. E o valor da Constituição, assim, é destruído, dando lugar àquela "tirania da maioria".

E uma vez que isso se torna realidade, é apenas natural que o povo queira tornar a Suprema Corte sujeita aos anseios populares também, como o Congresso. Se ela se transformou num poderoso mecanismo de criar leis, bem mais poderoso do que o próprio Congresso, claro que a população vai demandar maior controle sobre ela.

Se a Constituição é um recipiente vago a ser preenchido por um líquido diferente a cada geração, então que seja o povo, e não uma elite aristocrática que se julga ungida, a escolher o que colocar lá dentro. Nenhum povo vai aceitar passivamente tanto poder concentrado nas mãos de tão poucos "deuses". Seria a "tirania da minoria" no lugar da "tirania da maioria", algo ainda pior.

A politização da Suprema Corte, em suma, é péssima, mas uma consequência inevitável do abuso judicial, da Constituição "viva" que "evolui", e uma consequência preferível à alternativa, que seria o governo por uma aristocracia judicial. As cortes convidaram o povo a participar dessa forma no processo à medida que abriram mão de sua real missão: proteger o texto. Como conclui Scalia, em tradução livre:

É minha firme crença que, no longo prazo, nenhuma corte pode esperar permanecer imune à severa pressão política - tanto na fase de indicação, ou então de forma ainda mais direta por meio de vários procedimentos para remover do cargo - se ela assume o papel de inventar soluções para os problemas sociais em vez de meramente aplicar aquelas soluções prescritas no texto estatutário ou constitucional adotado democraticamente. Uma Constituição viva designada pela Corte vai significar uma corte controlada pelo povo.

Quando analisamos o caso brasileiro por esta ótica, com esses ministros que aí estão, fica mais fácil entender a enorme e legítima pressão popular sobre suas decisões. E também fica mais fácil entender porque quem nasce para lagartixa nunca chega a jacaré, ou seja, parecemos condenados ao arbítrio, a viver sob o império dos homens, não das leis.

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