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Trópicos utópicos: nossa sensualidade criou um povo malandro ou um povo otário?
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Li praticamente todos os livros de Eduardo Giannetti, quem admiro, e sempre se aprende coisas interessantes e se tem boas reflexões com eles. Não poderia deixar de ler, portanto, seu novo livro Trópicos Utópicos, que pelas entrevistas já imaginava ser uma espécie de contraponto ao meu Brasileiro é otário? – O alto custo da nossa malandragem. De fato: o livro representa uma visão alternativa – mas também complementar – àquela que defendo em meu novo livro.

Se eu, seguindo a linha de Eugênio Gudin, penso que não devemos tanto criar uma nova civilização, com pitadas indígenas e africanas, e sim observar e absorver aquilo que efetivamente funcionou mundo afora, Giannetti acha que temos o potencial da originalidade, e não poupa críticas ao modelo ocidental capitalista. Não se trata de um ataque infantil à esquerda, e sim de críticas legítimas aos seus excessos.

Mas é inegável a percepção de que o pensador “marinou”. Sua aproximação com Marina Silva parece ter servido mais para que ele mudasse do que o contrário, infelizmente. A preocupação com a “ameaça climática” soa excessiva, em minha opinião, assim como a defesa de um estilo de vida menos materialista. É mais fácil falar isso quando se tem o conforto do capitalismo do que quando se luta para sobreviver com o básico.

Eis, inclusive, a principal crítica que faço ao livro: ele acerta ao apontar os excessos dessa “corrida de ratos” por mais e mais acúmulo de bens, como se todos fôssemos o Tio Patinhas, o que pode tornar a vida vazia, desprovida de sentido mais elevado, mas ele erra ao imaginar uma alternativa coletiva diferente, mais “descolada” e “espiritual”. Acho que no âmbito individual sim, é possível buscar uma fuga elaborada desse “carrossel”, nas artes, na filosofia ou mesmo na religião. Mas para a sociedade como um todo é sempre muito arriscado apresentar propostas dessa natureza.

E fica-se com a impressão até de certa hipocrisia, uma vez que, apesar de toda a defesa encantada de um estilo de vida mais primitivo e indígena, Gianneti insiste um viver em São Paulo, sem dúvida a cidade mais próxima do modelo ocidental capitalista que temos, onde o dinheiro é quem manda. Por que ele não escolheu morar, digamos, na Bahia, ou mesmo no Rio, que certamente tem mais pitadas desse modelo “descolado” que ele defende?

Gostei de muitas passagens do livro, um tanto filosóficas, e acho saudável essa tentativa de chamar nossa atenção para os objetivos mais nobres de nossa existência. Achei positivo também seu duro ataque aos novos deuses da modernidade, como a obsessão pelo crescimento econômico (PIB), o consumismo desenfreado, a ciência e o utilitarismo, além da crença exagerada na razão. O iluminismo, especialmente o racionalista francês, fracassou em suas promessas mais irreais e arrogantes.

Há, porém, uma mensagem mais naturalista que considero um tanto romântica. É similar ao que defende o filósofo britânico John Gray, principalmente em Cachorros de Palha. O ser humano, com sua autoconsciência, estaria fadado ao sofrimento de conhecer sua própria finitude, de precisar de sentido para sua vida, enquanto os animais vivem de forma mais “tranquila”. Quem nunca sentiu inveja dos animais que não sabem para que vivem nem sabem que não o sabem?, questiona o autor.

Esse é o fio condutor para uma defesa de um estilo de vida mais emotivo, mais “instintivo”, apesar de o autor reconhecer que não seja possível “desmorder” a mação do conhecimento. Eu já penso que a civilização como a conhecemos, em especial a ocidental mais avançada, serviu justamente para domesticar o animal homem, conter sua besta interior, e que isso, apesar de gerar mal-estar, como sabia Freud, serve para uma vida melhor, mais pacífica e com mais qualidade. Apesar das neuroses.

É essa premissa que Giannetti coloca em xeque em seu livro. Ele menciona a enorme quantidade de drogas – lícitas e ilícitas – consumidas pelos ocidentais, ou a violência reprimida que encontra vazão sempre que possível, para questionar se o tiro não saiu pela culatra. A culpa sexual incutida pelo cristianismo, por exemplo, merece ácidas críticas. Mas será que a “naturalidade” dos índios com o sexo era mesmo melhor? E até que ponto esse vazio existencial de hoje não é consequência justamente do ataque às religiões, do hedonismo existencialista, das bandeiras “progressistas” vendidas pela esquerda?

Em suma, julgo suas críticas aos excessos ocidentais como válidas, mas é preciso tomar cuidado com duas coisas: 1) não tomar o exagero como regra, e criar uma imagem caricatural da sociedade; 2) não idealizar as alternativas, como se outras civilizações tivessem de fato conseguido alcançar equilíbrios mais saudáveis. Giannetti não é um utópico boboca, apesar de beber um tanto em Rousseau e companhia nessa obra. Mas acho que peca por essa “falácia do Nirvana”: comparar uma realidade imperfeita com uma alternativa “sonhática”, bem ao estilo de sua companheira política, Marina Silva.

Giannetti enaltece nossa “vocação para a felicidade”, expressa em festas como o Carnaval, em que uma multidão se sacode ao ritmo de samba celebrando o simples fato de estar vivo. Ele elogia nossa maior sensualidade, como contraponto aos “quadrados” anglo-saxões. Mesmo em meio à precariedade material, saberíamos viver melhor, segundo o autor. Mas até que ponto não é justamente essa passividade que nos impede de avançar, de progredir mais, do ponto de vista material?

“O dom da vida como celebração imotivada”, escreve Giannetti. Mas fico com a impressão de que ele quer ter e comer o bolo ao mesmo tempo. Deseja mais progresso material, sem dúvida, pois reconhece que somos pobres, que fracassamos em diversas metas sociais, no básico até, como saneamento, educação, segurança, transporte e saúde. Mas quer chegar mais perto dos índices de conforto e riqueza dos países desenvolvidos mantendo esse nosso apego ao sensual, a um estilo de vida mais leve e hedonista. Até que ponto uma coisa não impede a outra?

Em outras palavras: será que nosso lado mais Tupi não representa um obstáculo às conquistas obtidas pelo anglo-saxão, e um tanto desprezadas pelo autor? Será que nossa receita deve ser o modelo ocidental com fortes pitadas nambiquaras e africanas, como sugere Giannetti? Em pesquisas espontâneas, o povo da Nigéria também se destaca pela aparente felicidade. Devemos concluir que não faz tanto sentido, então, mirar em exemplos como Austrália e Suíça, mas sim misturá-los com o modus vivendi nigeriano?

Como já disse, esperava um livro que fizesse o contraponto ao meu, sobre nosso jeitinho nacional, mas creio que seja mais complementar do que necessariamente um contraponto. Sim, nossas conclusões diferem bastante, e nesse sentido são mensagens opostas. Mas tomando suas reflexões filosóficas como alertas para certos excessos, acho que é perfeitamente viável se extrair uma síntese de ambos.

Até porque eu mesmo não jogo no lixo toda a cultura brasileira, achando de forma prepotente que devemos simplesmente fazer tabula rasa dela. Não! O que eu condeno também são os excessos, ou seja, minha tese é a de que o tiro saiu pela culatra, de que aquilo que poderia ser até vantagem comparativa, um charme a mais na vida árida dos seres humanos, transformou-se no maior fardo para nosso progresso. Dá para jogar a água suja fora sem jogar junto o bebê? Ou será que nossa sensualidade não criou um povo malandro e descolado, mas sim um povo otário mesmo?

Rodrigo Constantino

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