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Supremo Tribunal Federal, o STF, gostar de fazer acrobacias jurídicas de vez em quando, como no caso do passaporte vacinal.
Ativismo judicial do STF ocorreu em relação à pandemia, ao racismo, à liberdade de expressão e ao despejo em terras invadidas| Foto: Rosinei Coutinho/STF

Seguindo a tendência de anos anteriores, o Supremo Tribunal Federal (STF) fez as vezes dos poderes Executivo e Legislativo em diversas decisões de 2021. O ativismo judicial da Corte pôde ser observado em campos variados, tais como a pandemia, o racismo, a liberdade de expressão e o despejo em terras invadidas.

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As propostas do Legislativo para limitar o poder do Supremo não vingaram, e a expectativa é de que o ímpeto ativista continue prevalecendo ao longo de 2022.

A Gazeta do Povo reuniu cinco exemplos emblemáticos de ativismo judicial dos ministros do STF durante o último ano.

A equiparação da injúria racial ao racismo

Em outubro, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o crime de injúria preconceituosa – que envolve ofensas racistas, xenofóbicas, homofóbicas ou antirreligiosas contra uma pessoa – é inafiançável e imprescritível. Pela primeira vez na história, um crime se tornou imprescritível sem ato do Poder Legislativo, com base numa decisão da Justiça.

Antes, só havia dois crimes imprescritíveis no Brasil, segundo a Constituição de 1988: a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o preconceito contra coletividades definidas por critérios como raça, cor, etnia e religião.

Essa cautela da lei com a imprescritibilidade tem um motivo claro, como explicou o jurista Andrew Fernandes Farias, especialista em Direito Penal, em fala à Gazeta do Povo. "A regra do sistema é a prescrição. O Estado tem um prazo para processar uma pessoa, para punir e para executar a pena. A regra é a prescritibilidade dos crimes, porque senão passaríamos ad aeternum esperando o Estado processar. Se a pessoa praticou crime com 18 anos, você vai punir a pessoa com 68? Você não está punindo a mesma pessoa. A imprescritibilidade é a exceção do sistema”, disse.

Conforme o Código Penal, a injúria por preconceito contra raça, cor, etnia, religião ou país de origem deveria prescrever em um prazo de oito anos. Mas a Corte consagrou o entendimento de que injúrias desses tipos são uma espécie de racismo – crime cuja pena, de acordo com a Constituição, jamais prescreve.

Além disso, como o STF equiparou o crime de homofobia ao de racismo em 2019, a injúria homofóbica também passou a ser um crime imprescritível. Isso porque ela faz parte, do ponto de vista judicial, da mesma classe penal das injúrias relacionadas a raça, cor, etnia, religião e procedência.

Dessa forma, em 2021, xingamentos homofóbicos também passaram a ser crimes imprescritíveis por via puramente judicial, sem que o Poder Legislativo tenha sequer debatido o tema.

A instauração de inquéritos

Os inquéritos do STF para apurar ofensas feitas contra a Corte – que a transformam em vítima, investigadora, acusadora e juíza ao mesmo tempo – continuaram sendo uma tendência forte em 2021.

Em fevereiro, o ministro Alexandre de Moraes decretou a prisão do então deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), após um vídeo com fortes críticas a membros do STF, em decisão relacionada aos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos.

Em julho, Moraes mandou arquivar o inquérito dos atos antidemocráticos, atendendo a sugestão da Procuradoria-Geral da República (PGR). Por outro lado, decidiu abrir uma nova investigação para continuar apurando a existência de uma "organização criminosa" digital montada "com a nítida finalidade de atentar contra a democracia e o Estado de Direito".

No âmbito dessas investigações, ele determinou, em outubro, a prisão e extradição do jornalista Allan dos Santos, do Terça Livre. Em agosto, Moraes já havia ordenado a prisão de Roberto Jefferson, ex-presidente nacional do PTB, pela suposta participação em uma organização digital criada para realizar ataques à democracia.

O próprio presidente Jair Bolsonaro também se tornou alvo dessas investigações, após declarações que relacionaram a vacina contra Covid com a Aids. Moraes considerou necessário apurar a relação entre essa informação veiculada pelo presidente e a atuação de uma suposta organização criminosa investigada pelo Supremo e que envolve aliados do presidente Bolsonaro.

Embora o regimento interno do STF já previsse a possibilidade de instauração de inquéritos pelos próprios magistrados, essa não era, até pouco tempo atrás, uma prática comum. Em 2020, isso começou a mudar; em 2021, a tendência se consolidou.

“A imparcialidade do magistrado é o que ele tem de mais sagrado. Quando o magistrado se envolve na investigação, a imparcialidade dele fica comprometida. Ele não pode ter protagonismos. A partir do momento em que o juiz participa da investigação, a imparcialidade dele fica em xeque”, disse Andrew Fernandes, advogado criminalista e sócio do Bayma e Fernandes Advogados Associados, em fevereiro, em entrevista à Gazeta do Povo.

A exigência do passaporte da vacina

Fechando o ano, em dezembro, o Supremo decidiu determinar as regras no Brasil sobre o passaporte da vacina, estabelecendo exigência de comprovante de vacinação contra a Covid-19 para que viajantes ingressem no Brasil, vindos do exterior.

Em novembro, o governo Bolsonaro havia editado uma portaria que exigia o documento, mas permitia a entrada se a pessoa apresentasse um teste negativo para a doença e se comprometesse a ficar em quarentena por cinco dias, seguida de um novo exame.

Mas, acolhendo um pedido do partido Rede Sustentabilidade, o ministro do STF Luís Roberto Barroso determinou que, para o ingresso no país, seria obrigatório comprovar a vacinação contra a Covid, exceto para quem tivesse recomendação médica contrária, de pessoas provenientes de países sem ampla vacinação ou por questões humanitárias.

Após um apelo do governo, o Supremo flexibilizou um pouco as exigências, e definiu que as pessoas que tivessem saído do Brasil antes do dia 14 de dezembro estariam dispensadas da comprovação da vacina ou da quarentena no regresso, mas deveriam apresentar o teste negativo para a Covid. Quatro dias depois da decisão monocrática de Barroso, seus colegas de Supremo confirmaram a liminar em votação no Plenário virtual. Mas o ministro Nunes Marques pediu para levar o julgamento ao plenário presencial e a análise no STF começará do zero.

Em seu perfil no Facebook, André Uliano, colunista da Gazeta do Povo, afirmou que as escolhas políticas sobre a vacinação exigem deliberação e, por isso, não cabem ao Judiciário. “Não é simples aplicação mecânica de um princípio sobre uma questão supostamente ‘óbvia’”, disse Uliano. “Em nenhuma democracia o Judiciário decidiu sobre política de vacinação ou impôs passaporte vacinal”, acrescentou.

A criação do “flagrante permanente”

Em fevereiro, entre suas justificativas para a decisão de prender o deputado federal Daniel Silveira, o ministro Alexandre Moraes afirmou que o parlamentar encontrava-se em "infração permanente" ao ter disponibilizado o vídeo em suas redes sociais, e que, por isso, poderia ser preso em flagrante.

De fato, o Código de Processo Penal prevê em seu artigo 303 que há "infrações permanentes", isto é, que não se dão só em um dado momento, mas se perpetuam no tempo, o que dá origem à noção de “flagrante permanente”.

Mas, por meio de uma manobra jurídica, Moraes inovou ao trazer para a internet o conceito de infração permanente. O raciocínio do ministro foi o seguinte: se a disponibilização de um vídeo nas redes sociais pode ser considerada um motivo para prisão em flagrante de forma permanente, não importando quando o espectador assiste ao vídeo, isso quer dizer que vídeos publicados há anos podem ser motivo para uma prisão em flagrante, se ainda estiverem no ar.

A interpretação de Moraes foi considerada por juristas como um grave exemplo de ativismo judicial, já que houve um salto de interpretação entre aquilo que a lei prevê e como isso se aplica ao caso de vídeos publicados em redes sociais.

A alteração da lei sobre despejo em áreas rurais

Em dezembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) acatou pedido feito pelo PSOL e mudou a Lei 14.261 de 2021, aprovada pelo Congresso em outubro de 2021, estendendo para 31 de março de 2022 o impedimento de execução de medidas judiciais de desocupação de áreas invadidas, sejam elas urbanas ou rurais, por causa da pandemia.

Para justificar a alteração da lei em âmbito judicial - a Constituição rege que a função de alterar uma norma é do Poder Legislativo, não do Judiciário -, o relator da decisão, Luís Roberto Barroso, citou o surgimento da nova variante ômicron, a existência de 123 mil famílias ameaçadas de despejo no país e as condições socioeconômicas da população.

Sobre a inclusão de terrenos rurais, não prevista por deputados e senadores na aprovação da Lei 14.261 de 2021- para evitar abusos de grupos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) -, Barroso afirmou que não haveria justificativa para proteger apenas "pessoas em situação de vulnerabilidade nas cidades". "A Lei nº 14.216/2021, nessa parte, cria uma distinção desproporcional e protege de forma insuficiente pessoas que habitam áreas rurais, distorção que deve ser corrigida na via judicial", diz o ministro.

Para o juiz federal Eduardo José da Fonseca Costa, doutor em Direito pela PUC-SP e ex-presidente da Associação Brasileira de Direito Processual, o ativismo judicial no caso é patente.

“A lei que havia sido sancionada, promulgada e publicada estabelecia um prazo que acabou de expirar para se impedirem despejos no curso da pandemia de Covid. Esse prazo já expirou. Usurpando competência do Poder Legislativo, o ministro prorrogou o prazo, como se legislador fosse. A usurpação de função legislativa é manifesta de tal maneira que ele prorrogou por critérios pessoais. Ele não declarou a lei inconstitucional e nem disse que a falta de legislação prorrogativa seria inconstitucional. E, ainda que o fizesse, não poderia legislar em lugar do Congresso Nacional”, avalia.

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