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Painel fotográfico de lembranças das vítimas de trânsito, que está montado no IPTran | Brunno Covello / Gazeta do Povo
Painel fotográfico de lembranças das vítimas de trânsito, que está montado no IPTran| Foto: Brunno Covello / Gazeta do Povo

Um bom lugar para começar de novo

"É chocante. Ali você vê o quanto a vida é frágil. E toma conta da besteira que fez". É assim que Antônio Márcio Cardoso dos Santos descreve o que representou para ele participar de uma reunião com parentes de vítimas de trânsito. "O que mais me impressionou foi ouvir as histórias. Em algumas pessoas, via o ódio no olhar. Me senti muito constrangido", relata. O representante comercial de 35 anos, morador de Pinhais, afirma que sua atitude no trânsito – e também na vida – mudou depois da experiência no IPTran.

Ele voltava de uma festa de confraternização da empresa, no final de 2012, quando se envolveu em um acidente sem vítimas. Afirma que nem foi o causador da colisão, mas como havia bebido – "eu realmente estava com os reflexos alterados" – perdeu a carteira e foi condenado por embriaguez ao volante. Além de fazer o curso de reciclagem no Detran, foi encaminhado para prestação de serviços comunitários.

Hoje, Márcio acha que esse tipo de choque de realidade devia ser provocado antes que os acidentes acontecessem. "E também penso que todo mundo que faz algo errado no trânsito devia ser obrigado a fazer o curso." Ele conta que repensou a vida, voltou a praticar esportes, deixou a boemia, casou e tem uma filha de 8 meses. "Tive sorte de não ter acontecido nada mais grave. Antes era normal sair do trabalho e ir para o bar com os amigos. Voltava dirigindo, sem pensar nisso. Hoje, ainda bebo um pouco nos finais de semana, mas não misturo com direção." Virou colaborar voluntário do IPTran e, para os amigos mais próximos, sempre comenta sobre os riscos de não ter uma atitude responsável no trânsito.

Opinião

Sem números e investigação, fica difícil combater os crimes

Vários crimes são cometidos contra as famílias que perdem um parente no trânsito – e contra a própria vítima, é claro, que não mais pode se defender. Além de situações de descaso, ficou claro, ao produzir esta reportagem, que o Estado falha no combate aos casos de delitos graves nas ruas e estradas. E não se trata apenas da falta de fiscalização, que por si gera um sem número de consequências. Não há, por exemplo, levantamentos sobre reincidências em crimes de trânsito. A falta de estatísticas dificulta o diagnóstico do problema e a elaboração de políticas públicas.

Outro atentado ainda mais revoltante é praticado ano após ano. Diante de tantos homicídios dos mais variados tipos, as delegacias não dão conta de investigar os casos de acidente. Assim, muitas vezes, os inquéritos ficam em gavetas, sem que sejam realizadas perícias, sem que os envolvidos sejam ouvidos. Nem chegam a se transformar em processos que, aí, terão de enfrentar a morosidade da Justiça. Nas duas histórias mostradas na reportagem, os acidentes aconteceram há mais de cinco anos e os motoristas ainda nem prestaram depoimento. Tudo isso aumenta, nas famílias e na sociedade, a sensação de impunidade.

Em alguns países, acidentes de trânsito levam à condenação do estado. Ou faltou infraestrutura, como sinalização e traçados melhores, ou o governo deveria ter impedido que uma pessoa sem condições de dirigir – por imperícia ou embriaguez, por exemplo – assumisse o volante. Quem sabe se no Brasil os governos fossem cobrados por suas omissões, a história seria diferente. Fica a dica.

Serviço

16 de novembro – Dia Mundial em Memória das Vítimas de Trânsito

Culto ecumênico no Parque da Barreirinha, no Bosque da Vida, hoje, às 10 horas; painel humano no Parque Barigui, próximo ao Salão de Atas, hoje, às 16 horas. Famílias de vítimas, vestidas de branco, formarão mensagens de alerta para tentar reduzir a quantidade de casos de acidente.

  • Cleia:
  • Dirce: quarto fechado e anotações em cadernos
  • Márcio:

Para evitar mais famílias dilaceradas por causa de acidentes de trânsito, um projeto que está dando certo em Curitiba deve se espalhar pelo Brasil. Os infratores são colocados diante de parentes de vítimas. O choque de realidade inclui, muitas vezes, a prestação de serviço como maqueiro em um hospital para acidentados. A iniciativa inédita no Brasil tem gerado resultados: dos 287 motoristas que passaram pelo programa, apenas um voltou a ser flagrado em atitude ilegal.

Numa parceria que vigora há dois anos, a 2ª Vara de Delitos de Trânsito de Curitiba encaminha motoristas para um curso de reeducação no Instituto Paz no Trânsito (IPTran). A carga horária a ser cumprida muda de acordo com a gravidade do crime, variando de 40 horas em detenções em blitz da Lei Seca a 150 horas para omissão de socorro em acidentes. Situações em que houve morte não se enquadram nesse tipo de pena alternativa.

Parte do dinheiro arrecadado pela 2ª Vara como pena pecuniária (multa) vai para o IPTran, para ajudar a pagar os seis funcionários e a manter a estrutura montada na rua Fernando Amaro, 802, Alto da XV. São aproximadamente R$ 20 mil por mês – o restante vem de doações.

Escala

Christiane Yared, que fundou o IPTran e acabou de ser eleita deputada federal, pretende reproduzir o modelo em escala nacional. Ela busca voluntários em outras cidades para montarem institutos semelhantes, negocia com o Judiciário para que mais varas encaminhem infratores para a "recuperação" e estuda que mudanças nas leis poderiam melhorar a forma de cumprimento de penas por quem cometeu crime de trânsito. "Eles passam de infratores a educadores", conta, comentando que vários motoristas passam a colaborar voluntariamente no IPTran depois da conclusão do curso.

Já houve procura para montar institutos em Ponta Grossa, Cascavel, Joinville, São Paulo, Manaus e Fortaleza. Além de participar de reuniões com familiares de vítimas, os infratores também passam por um processo de reeducação para voltar a dirigir – que inclui orientações de trânsito, como direção defensiva, e várias sessões com psicólogos. "Se a pessoa percebe que pode acabar com uma vida, a pessoa fica mais cautelosa", comenta o juiz Lourenço Chemin, explicando os motivos pelos quais decidiu sair dos padrões e buscar medidas mais efetivas para conscientizar sobre os perigos da direção.

Nos chamados crimes de menor potencial ofensivo – como dirigir com a habilitação cassada ou causar ferimentos – são puníveis com penas de até três anos, que podem ser transformadas em prestação de serviço à comunidade ou revertidas em multa. Na maioria das varas judiciais do país, o infrator pode escolher se paga em dinheiro ou se participa de uma ação comunitária, que pode ser pintar um muro ou ajudar numa escola. Ele não vai, necessariamente, para uma instituição ligada ao trânsito. Com a parceria em Curitiba, o motorista se vê obrigado a repensar as atitudes que toma ao volante.

Famílias ficam marcadas por tragédias do trânsito

Passados cinco anos do acidente, Dirce Purkott ainda não consegue mexer nos objetos do quarto do filho. Por muito tempo, ela nem pisou lá. Agora entra, dá uma olhada e sai. Mas ainda precisa que outra pessoa limpe o local e não sabe até quando tudo ficará intacto. Cada vez que anda pelo corredor de casa, revive uma dor que não passa.

Luiz Vinícius morreu aos 18 anos, ao voltar de uma festa da empresa onde trabalhava. Ele não bebia, mas pegou carona com um rapaz alcoolizado. Só depois de girar na pista e bater em três postes da Linha Verde, o carro parou, cravando 133 km/h no velocímetro. Outro colega de Luiz Vinícius também morreu no acidente. O motorista saiu quase ileso. Começava o drama de Dirce.

A família dela estava se destruindo. "Eu demorei a aceitar um abraço do meu outro filho. Até que um dia ele chegou pra mim e disse: ‘Mãe, eu não morri ainda’. Foi um choque", conta. Ela teve ajuda do Instituto Paz no Trânsito e conversou com outras mães sobre o luto. "O caderno também foi o meu psicólogo. Tenho dois cheios. Escrevia tudo o que estava sentindo."

Motorista profissional, Dirce, de 44 anos, afirma que sempre foi cuidadosa e que redobrou a atenção. Com a posse de Christiane Yared como deputada federal, no início de 2015, Dirce assume a presidência do IPTran.

Sem cozinhar

A advogada Cleia Policarpo Santos Queiroz, de 56 anos, perdeu o único filho em um acidente de trânsito, em 2006. Para ela, nem parece que faz tanto tempo. Leonardo sempre está com Cleia, estampado na camiseta que virou seu uniforme. O rapaz de 19 anos estava na BR-277, de moto, quando um motorista fez uma conversão vindo da pista contrária para entrar em um motel, em Cascavel. Leonardo passou a ser a quarta morte no trânsito na família de Cleia.

Depois de fechar a casa com tudo dentro e morar por dois anos no Acre – só para não ter de falar sobre o assunto –, Cleia não conseguiu manter o casamento. "Enterrei com o meu filho todo o meu amor". Ela ainda vive o luto. "Até hoje, não consigo nem cozinhar. O Leonardo gostava das comidas que eu fazia", conta. Para ajudar outras mães, ela dá orientações jurídicas no IPTran. "Você tem o direito de ser feliz, de curtir a vida, mas tem a obrigação de cuidar para não machucar os outros", alerta.

Qualquer pessoa pode se tornar um réu de trânsito, reforça juiz

A crença de que as penas alternativas, quando bem aplicadas, podem "regenerar" o infrator impulsionou o juiz Lourenço Chemin a assumir uma posição de vanguarda e estabelecer uma parceria para a reeducação para o trânsito. Foi o que fez, na 2.ª Vara de Delitos de Trânsito de Curitiba. "Quando cheguei aqui, o convênio era com a FAS [Fundação de Assistência Social]", conta, relatando que as penas não eram cumpridas numa instituição ligada ao trânsito.

Chemin destaca que os delitos de trânsito são diferentes daqueles praticados pelo criminoso comum. "Qualquer pessoa pode se transformar em um réu de trânsito. Se está a 40 km/hora e se distrai, pode atropelar alguém", enfatiza. Assim, ele acredita que é necessário pensar em uma punição adequada e compatível ao erro cometido. Com quatro anos de experiência em decisões de trânsito, o juiz desconhece outra iniciativa semelhante no Brasil. O Conselho Nacional de Justiça, procurado pela reportagem, também não conhece.

Para ele, o que precisa mudar é a cultura. "Agora é comum sair à noite e voltar para a casa sem estar cheirando a cigarro [por causa da proibição de fumar em lugares fechados]. A lei do cinto de segurança foi outra que pegou", comenta. Chemin argumenta que, enquanto não houver conscientização, é preciso intensificar os mecanismos de controle. "O carioca tem medo da Lei Seca porque sempre tem blitz. É necessário fiscalizar mais e com frequência", acredita. Enquanto os problemas não são reduzidos pela educação ou pela repressão, o juiz continua tentando evitar mais casos de irresponsabilidade no trânsito, aplicando aos flagrados uma sessão de reaprendizado.

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