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Manifestantes celebram com lenços verdes – símbolo dos ativistas pela legalização do aborto – em frente ao Congresso argentino em Buenos Aires em 11 de dezembro de 2020.| Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP

Após uma sessão que durou 12 horas sob manifestações, o Senado da Argentina aprovou na madrugada desta quarta-feira (30), por 38 votos a favor, 29 contra e uma abstenção, a legalização do aborto no país. O presidente da Argentina, Alberto Fernández, promotor da proposta, deve sancionar a norma (veja o texto na íntegra) nos próximos dias. A lei, que permite o aborto até a 14ª semana de gestação, é resultado de um longo processo, que começou na década de 1980 e se intensificou a partir dos anos 2000. Ainda que as circunstâncias dos dois países sejam diferentes, as etapas do processo de normalização desse debate na sociedade argentina podem servir de lição para defensores da vida no Brasil.

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Artigos científicos da antropóloga argentina Mónica Tarducci, uma ativista feminista, relatam como a pressão de grupos feministas e de coletivos LGBT foi determinante para avançar a pauta do aborto no país, e como, há muito anos, as feministas enxergam na Igreja Católica a principal opositora dessa pauta.

O catalisador do debate sobre o tema no país foi um fórum anual chamado de Encontro Nacional de Mulheres (ENM). No encontro de 2003, em Rosário, ganhou força a Assembleia pelo Direito ao Aborto, que teve grande influência para impulsionar a discussão sobre o aborto na Argentina.

Em 2005, em um de seus artigos – publicado, aliás, em uma revista científica brasileira –, Tarducci diz que “a enorme influência da Igreja Católica na Argentina é mostrada dramaticamente cada vez que se tentam mudanças legislativas para fazer avançar os direitos humanos em geral e das mulheres em particular”. Ela diz ainda que “mulheres enviadas pelas paróquias” para participar dos ENMs tentam “impor uma visão fundamentalista sobre determinados temas”.

No mesmo artigo, Tarducci fala sobre o impacto do movimento “Católicas pelo Direito de Decidir” em subverter a mensagem da Igreja Católica contra a legalização do aborto. Esse grupo, que nasceu na década de 1970 nos Estados Unidos e se espalhou por toda a América Latina, tem um braço no Brasil. O seu nome é uma contradição em termos, já que o posicionamento da Igreja Católica contrário ao aborto tem caráter dogmático, isto é, é definitivo e imutável.

“A organização Católicas pelo Direito de Decidir, da cidade de Córdoba, trouxe lenços verdes com inscrições como ‘Católicos pelos anticoncepcionais’, ‘Pela despenalização do aborto’, ‘Pela contracepção’, que eram distribuídos no início da marcha. Esse fato teve um grande impacto visual”, conta a antropóloga feminista sobre o ENM de Rosário, em 2003.

No Brasil, em outubro deste ano, o Centro Dom Bosco, uma instituição católica sediada em São Paulo, venceu um processo contra o braço brasileiro do “Católicas pelo Direito de Decidir”. Em decisão de segunda instância, a Justiça de São Paulo proibiu o grupo de usar o termo “católicas” em seu nome.

Argentina quase sempre deu passos antes do Brasil no tema do aborto

Em geral, historicamente, a Argentina quase sempre se antecipou ao Brasil em ampliar as possibilidades de aborto previstas em lei. No Brasil, o Código Penal de 1940 determinou que o aborto não deve ser penalizado em casos de gravidez por estupro, o que já havia ocorrido na Argentina em 1921 – no caso argentino, contudo, o médico precisava pedir autorização da Justiça atestando problemas psíquicos da mulher, o que deixou de ser necessário por uma decisão da Justiça a partir de 2012.

O aborto de anencéfalos foi liberado pela Suprema Corte da Argentina em 1995. No Brasil, isso ocorreu em 2012, por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).

Já no início da década de 1990, um grupo feminista tentou emplacar no Congresso da Argentina um projeto de lei para descriminalizar o aborto, mas não teve êxito. Em 1994, na última reforma constitucional da Argentina, feministas lutaram para que uma cláusula que defendia a vida humana desde a sua concepção não fosse aprovada. Contudo, os constituintes argentinos vincularam à Constituição algumas convenções internacionais que, indiretamente, incorporaram essa ideia ao texto constitucional, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da OEA (Organização dos Estados Americanos) e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, da ONU.

Para alguns grupos pró-vida, essas convenções protegem o ser humano desde a sua concepção, o que torna inconstitucional qualquer lei que legalize o aborto na Argentina. Essa interpretação não é compartilhada por grupos que defendem a legalização do aborto.

Vários projetos de lei tramitaram no Congresso argentino desde então, especialmente a partir dos anos 2000. Em 2018, os grupos pró-aborto finalmente alcançaram força suficiente para promover a discussão entre os congressistas, e a Câmara aprovou o projeto de lei que visava legalizar o aborto até a 14ª semana de gestação. O Senado, no entanto, rejeitou a proposta.

No Brasil, há poucos projetos de lei favoráveis a ampliar as possibilidades de aborto, e nenhum deles recebeu atenção especial do Congresso nos últimos tempos. O que mais avançou até hoje foi um projeto de lei de 1991, de autoria do deputado Eduardo Jorge (atual PV-SP, então PT), que visava despenalizar o aborto no Brasil. O PL foi rejeitado de forma quase unânime em votação realizada 17 anos depois, em 2008, e está arquivado. Em 2017, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) pediu ao STF que descriminalize o aborto até três meses de gravidez. A ação ainda não foi julgada.

Estratégia de vender aborto como “saúde da mulher” emplacou na Argentina e já foi ensaiada no Brasil

Uma das estratégias de grupos abortistas é usar eufemismos como “saúde da mulher” ou “saúde sexual e reprodutiva” para abordar o tema da legalização do aborto de forma velada. Essa estratégia foi aplicada com êxito na Argentina poucos anos antes da aprovação da legalização do aborto pela Câmara em 2018, e acabou sendo um passo para normalizar a prática no país.

Na Argentina, assim como no Brasil, o aborto não é penalizado em casos de risco de vida para a gestante. Em 2015, o Ministério da Saúde argentino divulgou um protocolo para dizer que entre os riscos para a saúde e a vida da mãe deveriam considerar-se o bem-estar físico, psíquico e social. Na prática, com o uso de termos tão subjetivos, o documento ampliou as possibilidades de aborto.

No Brasil, em julho, a Câmara aprovou com modificações um projeto de lei que continha trechos dúbios que poderiam facilitar a prática do aborto no Brasil. Um dos trechos do projeto original falava justamente em “saúde sexual e reprodutiva”, mas foi removido do texto depois do alerta de movimentos pró-vida. O objetivo do projeto era estabelecer medidas emergenciais de proteção à mulher vítima de violência doméstica durante a pandemia.

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