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Protesto contra a legalização do aborto na Argentina, que reuniu milhares de pessoas no último dia 28 de novembro.
Protesto contra a legalização do aborto na Argentina, que reuniu milhares de pessoas no último dia 28 de novembro.| Foto: Reprodução / Radio FM 96.5 Power Station / Facebook

Em um intervalo de tempo de menos de três meses, o governo do presidente Alberto Fernández, que chegou ao poder no início de 2020 na Argentina, tomou uma sequência de decisões de caráter progressista em temas de costumes.

Em setembro, Fernández publicou um decreto instituindo cota para transexuais no serviço público. Isso envolve o Exército do país, que precisará ser composto por 1% de pessoas trans. Em 12 de novembro, o presidente argentino assinou outro decreto legalizando o cultivo de maconha para uso pessoal. Menos de uma semana depois, emitiu um projeto de lei para permitir o aborto até a 14ª semana de gestação.

As decisões não são completamente inesperadas. A legalização do aborto, por exemplo, foi uma promessa de campanha de Fernández. Ainda assim, as medidas estão longe de refletir um anseio geral da população argentina.

No sábado (28), milhares de argentinos saíram às ruas para protestar contra o projeto de Fernández sobre o aborto, que deve ser analisado pelos congressistas argentinos nos próximos dias. Manifestantes pró-vida se reuniram em frente ao Congresso, e passeatas foram organizadas em centenas de cidades argentinas.

Na semana passada, professores de Direito de diversas universidades do país publicaram uma declaração conjunta contra o projeto de Fernández. “Uma política de ‘saúde pública integral’ cujo objetivo seja ‘regular’ a eliminação dos seres humanos mais inocentes não só é uma contradição em si mesma, mas um inqualificável agravo à dignidade humana, repugnante a toda consciência reta”, afirmaram os professores.

Uma das signatárias, a jurista Livia Uriol, decana da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidad del Salvador, afirma que a intenção do documento é defender a vida com argumentos jurídicos, já que não é necessário recorrer à religião para rechaçar o aborto.

“Neste documento, não falamos de questões morais, religiosas ou de convicções pessoais. Limitamo-nos a apresentar argumentos jurídicos. O documento explica os motivos jurídicos pelos quais esse projeto de lei é inconstitucional”, diz.

Também na semana passada, o Papa Francisco fez uma afirmação parecida, ao dizer que a questão do aborto “não é um assunto primariamente religioso, mas de ética humana, anterior a qualquer confissão religiosa”.

Debates sobre pautas de costumes maquiam crise argentina

Livia Uriol ressalta que a Constituição da Argentina e o Código Civil e Comercial do país “consideram que alguém é pessoa humana desde o momento da concepção, seja no seio materno ou fora dele”. Para ela, “as políticas públicas deveriam ter sempre como objetivo transcendente o bem comum, a preservação da vida do ser humano, de cada ser humano, para que possa se desenvolver plenamente na sociedade”.

Além do tema da dignidade humana, segundo ela, outro aspecto da legislação argentina que o projeto de Fernández desrespeita é o federalismo. “É preciso respeitar o direito das províncias de poder legislar em temas de políticas de saúde e educação”, afirma a professora.

O aborto já havia sido levado ao Congresso em 2018. Na época, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto que legalizava a prática, mas o Senado barrou. Livia considera que reabrir a mesma discussão somente dois anos depois, em plena crise econômica agravada pela pandemia, é inoportuno.

“Não é o momento adequado para abrir novamente esse debate. O país está atravessando uma crise sanitária muito grave, acompanhada de uma grave crise econômica. Alguns economistas falam que a crise atual é a pior que a de 2001, com índices de pobreza e de desemprego alarmantes. Não é o momento. O Congresso devia se preocupar em reativar a economia do país, antes de se ocupar deste tema”, afirma.

A legalização da maconha também é uma pauta que já tinha sido abordada pouco tempo atrás no país. Em 2017, uma lei autorizou o “uso medicinal, terapêutico ou paliativo” da Cannabis e de seus derivados. O decreto recente é mais um passo em direção à liberação do uso da droga, ao permitir o cultivo para uso pessoal e, na prática, facilitar consideravelmente o uso recreativo.

“O projeto não busca somente a utilização da Cannabis com fins medicinais, mas permite também o consumo da Cannabis com fins recreativos”, explica a jurista, para quem as políticas públicas deveriam se preocupar mais com as pessoas que sofrem com o vício. “O viciado é um escravo da droga. Perde todo o sentido da vida. As energias do estado têm que se direcionar na prevenção, no tratamento, na reabilitação e na reinserção do doente, para devolver sua dignidade”, afirma.

Para ela, as recentes decisões sobre temas de costumes “são cortinas de fumaça, para que as pessoas se esqueçam dos graves problemas que a Argentina enfrenta”, sobretudo com a má gestão da pandemia e a grave crise econômica que afeta o país. “É uma forma de esconder os grandes problemas da nossa sociedade”, destaca.

Decisões estimulam polarização e divisão entre argentinos

Livia afirma que as recentes discussões têm polarizado a sociedade argentina. Geograficamente, o norte do país tem um perfil mais conservador, e o sul, que inclui a província de Buenos e a região metropolitana da capital, apresenta uma visão de mundo mais progressista.

Para ela, o tema do aborto traz à tona, novamente, essas divisões, o que é especialmente prejudicial em um momento de crise. “Esse novo debate significa voltar a gerar divisão, crispação social”, afirma.

“A polarização e a divisão são uma forma de fazer política na Argentina que tem mais de 70 anos. Sempre estamos divididos de um ou outro lado da rachadura. Isso nos causa muito dano como sociedade. Por causa disso, em grande parte, a Argentina era uma potência mundial no começo do século 20 e, agora, é um país subdesenvolvido com grandes carências e em crise permanente”, avalia a professora.

A divisão acirrada se reflete no próprio Congresso. O mais provável é que a Câmara dos Deputados aprove o projeto de lei, como ocorreu em 2018. No Senado, contudo, a disputa é bastante parelha. E a postura de Cristina Kirchner, atual vice-presidente da Argentina e presidente do Senado, será decisiva para os rumos da discussão.

No passado, Cristina se dizia contrária à legalização do aborto, mas, nos últimos tempos, ela tem sido ambígua. Sua filha, Florencia Kirchner, é uma ativista pró-aborto, e isso, segundo jornais argentinos, tem influenciado suas ideias. Os congressistas favoráveis à lei têm pressa para votá-la, e não é pouco provável que o projeto seja levado ao Senado ainda em 2020. Diante da incerteza e até da possibilidade de um empate na votação dos senadores, a opinião da vice-presidente poderá ser decisiva.

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