A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deve decidir, nesta terça-feira (3), se permitirá em território brasileiro o plantio da Cannabis sativa, a popular maconha, exclusivamente para fins medicinais e de pesquisa científica. No mesmo dia, os diretores da agência devem aprovar quais serão as regras para o registro de medicamentos à base dos elementos extraídos da cannabis, como o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC).
A tentativa de regulamentação, na verdade, é um imbróglio que envolve vários fatores, como a troca de direção da Anvisa prestes a acontecer, a opinião do governo sobre o tema, um debate paralelo no Congresso e as diferentes evidências científicas a respeito dos benefícios de medicamentos à base de componentes da maconha. Além do canabidiol e do tetrahidrocanabinol, espera-se que a planta tenha ao menos outros 400 elementos, que ainda devem ser estudados.
A decisão deverá ser tomada em reunião da Diretoria Colegiada da Anvisa, que começará às 10 horas e não tem hora para acabar. Devem votar quatro dos cinco diretores: William Dib, atual presidente da Anvisa, Alessandra Bastos, Antônio Barra Torres e Fernando Mendes Garcia Neto. O quinto diretor, Renato Alencar Porto, pediu renúncia do cargo, entrou em férias e não participará da decisão. Em caso de empate, o voto do presidente, favorável à legalização do cultivo, prevalecerá.
Dib tem sido criticado pelo ministro Osmar Terra, da Cidadania, por sinalizar pela aprovação do cultivo da maconha para fins medicinais. Segundo terra, Dib está "ouvindo alguns interessados economicamente nisso ou está realmente querendo liberar a droga no Brasil". O presidente Jair Bolsonaro (PSL), embora tenha dito, em agosto desse ano, que segue a "linha" de Terra, afirmou que não pode "interferir na decisão da Anvisa".
Outros críticos à proposta também garantem que a medida abrirá brecha para o uso recreativo da droga. Pesquisa ampla divulgada na The Lancet (leia a pesquisa abaixo em pdf) revela que, nos Estados Unidos, a permissão do plantio da maconha para uso medicinal não trouxe tantos benefícios quanto os esperados – há outros medicamentos mais eficazes para muitas das patologias para as quais tenta-se utilizar elementos da cannabis para tratar – e a liberação do cultivo acabou sendo o catalizador para a legalização do uso recreativo.
Histórico
No Brasil, a regulamentação do uso medicinal de componentes extraídos da maconha começou em 2015, ano em que a Anvisa publicou a resolução nº 17/2015, permitindo, em caráter de excepcionalidade, que pessoas físicas – para uso próprio e mediante prescrição de profissional legalmente habilitado – importassem produtos à base de canabidiol em associação com outros canabinoides. Essa condição permanece até hoje, e as solicitações de importação passam por análises criteriosas. Os medicamentos custam milhares de reais aos pacientes.
Dois anos mais tarde, a Anvisa regulamentou a produção do primeiro medicamento com derivado de maconha no país, o Mevatyl. Atualmente, além disso, há pacientes que, por meio de autorização judicial, têm permissão para cultivar a planta em domicílio e produzir seus próprios medicamentos – o que preocupa muitas organizações de saúde, considerando que é preciso especialização para lidar com componentes como o THC que, em doses altas, pode causar danos irreparáveis ao organismo.
Como sinal de que quer expandir o escopo de regulamentação e facilitar o acesso à substância, em junho deste ano, a agência submeteu à consulta pública as duas resoluções que serão votadas nesta terça.
Após a consulta pública, um texto final foi consolidado e apresentado, em 15 de outubro, na reunião da Diretoria Colegiada. Na ocasião, dois diretores da agência, Fernando Mendes e Antônio Barra, solicitaram vistas e a decisão sobre as duas resoluções foi adiada. Agora, o tema está pronto para ser votado.
A resolução que trata das plantações estabelece que elas sejam realizadas em recintos fechados e controlados, não identificados por placas ou letreiros, apenas por laboratórios credenciados. Será necessário, ainda, câmeras de segurança e biometria para entrada no local. Cotas, dejetos e transporte também deverão ser fiscalizados.
Até a etapa de secagem da planta, propõe ainda a resolução, não será possível comercializá-la para pessoas físicas, vendê-la a distribuidoras ou farmácias de manipulação. A venda só seria permitida a instituições de pesquisa, fabricantes de insumos farmacêuticos e fabricantes de medicamentos.
Evidências
E quais são as comprovações científicas de que os componentes da cannabis têm eficácia no tratamento de doenças? Embora alguns estudos demonstrem que os derivados dessa planta contribuem, por exemplo, no tratamento de doenças que afetam o sistema nervoso, é preciso ainda avançar muito nas pesquisas. Os levantamentos feitos até agora não são suficientes para afirmar que esses medicamentos são benéficos e para quais pacientes.
É por isso que órgãos como o Conselho Federal de Medicina e outros se posicionam contra a regulamentação do cultivo da maconha e registro de medicamentos no país.
“Em 2014, foi feita uma grande revisão da literatura científica e simplesmente se viu que não havia evidências científicas comprovadas dos benefícios do canabidiol”, diz o médico e vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM) Donizetti Dimer Giamberardino. “O que sabemos, por exemplo, é que o THC tem uma alta toxidade e ele pode ser prejudicial para as pessoas”.
Para Giamberardino, a tentativa de uso da maconha revela desespero.
“As famílias, na esperança de que seus filhos melhorem, começaram a tentar usar maconha, mesmo com os riscos da toxidade do THC”, afirma. “É por isso que o CFM de posiciona contra isso. Do ponto de vista médico, a medicina não pode fazer o mal, e não dá para misturar o financiamento com necessidade técnica. Com doses erradas de THC, os danos são gravíssimos. Pode causar dependência, alteração de memória, distúrbios psiquiátricos, psicoses”.
Do ponto de vista do CFM, outro fator que preocupa é a real capacidade de a Anvisa fiscalizar o cultivo e registro desses medicamentos ao redor do país. “A Anvisa registra todos os medicamentos, os genéricos, os de referência. Se você perguntar à agência se ela consegue fazer a fiscalização de todos os produtos dessas indústrias... é muito difícil”, diz Giamberardino. “Temos visto medicamentos que têm doses menores ou maiores de sais, lotes que estão certos e outros que não têm o mesmo critério de qualidade. É muito difícil, não é falta de vontade, mas são muitos registros”.
No estudo publicado na The Lancet, pesquisadores revelam que, na verdade, para muitas doenças, os benefícios de medicamentos à base de maconha são de nível “baixo” e “muito baixo”. “Muitos médicos do Canadá e dos Estados Unidos relutam em recomendar medicamentos à base de cannabis por conta da falta de evidências científicas e preocupações de responsabilidade por qualquer efeito adverso”, diz o documento. “No Canadá e nos EUA, evidências científicas sobre os benefícios dos medicamentos são escassas. Há, no geral, evidências ‘razoáveis’”.
Para dores crônicas não oncológicas, o efeito se mostra "muito baixo", e para o tratamento de dores causadas por câncer, seja ele qual for, as evidências vão de "baixas" a "muito baixas". No caso das epilepsias, o benefício ao utilizar medicamentos à base de cannabis também são "baixos", revela a pesquisa. A única comprovação de nível alto de benefício é para o tratamento de dor neuropática (dor crônica provocada pela danificação do Sistema Nervoso Central).
Os cientistas ainda revelam que o uso recreativo da maconha aumentou entre adultos nos estados americanos que permitiram o cultivo da planta para uso medicinal.
“Programas de ‘maconha medicinal’ podem ter facilitado a legalização do uso recreativo da droga ao ocultarem a diferença entre uso medicinal e não medicinal, além de permitirem a venda a varejo para uso medicinal sem a menor supervisão médica”, revela o estudo. “Isso também confundiu a percepção pública a respeito dos riscos e consequências do uso da cannabis e aumentou o apoio público para legalizar o uso recreativo”.
Questionada sobre as evidências científicas, a Anvisa apenas informou que o único a ser afirmado é que "há evidências e fatos que tornam necessária a discussão do tema pela agência. Um destes fatos é que médicos tem feito a prescrição destes produtos para seus pacientes. Atualmente, temos no Brasil mais de 8 mil pacientes cadastrados para o importação excepcional de produtos com derivados de cannabis".
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