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Audiências de custódia: desde a implementação da medida, quase 40% dos presos em flagrante foram soltos
Desde sua inserção no ordenamento jurídico brasileiro, em 2015, já foram realizadas mais de 760 mil audiências de custódia| Foto: Agência CNJ

Com a publicação de uma Resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2015, as chamadas audiências de custódia tornaram-se uma realidade no ordenamento jurídico brasileiro. Apesar de não terem sido originadas por lei, as sessões passaram rapidamente a ser realizadas em todos os estados brasileiros. Em 2019, o Congresso Nacional aprovou a Lei 13.964, que incluiu o novo instrumento no Código de Processo Penal. Até hoje, foram realizadas 761,2 mil audiências.

As audiências de custódia consistem na apresentação da pessoa que foi presa em flagrante (em sua maioria por crimes como tráfico de drogas, roubo, furto e violência doméstica), no prazo máximo de 24 horas após a prisão, a um juiz, em uma audiência na qual também estarão presentes o Ministério Público e a Defensoria Pública ou o advogado do preso. As principais premissas da medida são verificar a legalidade da prisão (identificar se há meios para concessão de liberdade ao autuado); mensurar a integridade física e psíquica do preso e apurar eventuais maus-tratos por parte de agentes policiais.

A medida é polêmica. De um lado, o CNJ sustenta que as audiências asseguram maior proteção aos direitos humanos, combatem a superlotação carcerária e dão celeridade aos procedimentos. Por outro lado, há críticas devido ao alto número de liberações de presos – quase 40% de todas as audiências resultam em concessão de liberdade com ou sem medidas cautelares diversas da prisão, ainda que as prisões tenham ocorrido em flagrante – e aos altos custos materiais e humanos necessários para a realização dos atos. Além disso, para autoridades policiais, a medida é fundamentada no argumento preconceituoso de que, como regra, os agentes policiais cometem abusos ao efetuar prisões.

Como funcionam as audiências de custódia

A instauração dessas audiências se fundamentou no art. 9º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas e no art. 7º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”, cita o item referente ao tema, presente no Pacto de São José da Costa Rica.

A Resolução 213, do CNJ – publicada em dezembro de 2015 durante a gestão do ministro do STF Ricardo Lewandowski na presidência do órgão –, determinou que todos os estados do Brasil implantassem a medida. As audiências são válidas para qualquer espécie de crime - com exceção daqueles de menor potencial ofensivo, que não admitem prisão em flagrante -, desde que não tenha sido arbitrada fiança ao preso pela própria autoridade policial; situação em que ele não será apresentado em juízo.

Durante a audiência, haverá obrigatoriamente representantes do Ministério Público, além do advogado do autuado – ou a Defensoria Pública, caso o preso não tenha constituído advogado até o momento. Durante a sessão, é proibida a presença dos agentes policiais responsáveis pela prisão ou pela investigação.

Segundo as diretrizes instituídas pelo CNJ, caberá ao juiz, dentre outras determinações, assegurar que o preso não esteja algemado, indagar sobre as circunstâncias de sua prisão ou apreensão; e perguntar sobre o tratamento recebido em todos os locais por onde passou antes da apresentação à audiência, questionando sobre a possível ocorrência de tortura e maus-tratos para adotar as providências cabíveis.

De acordo com o item 10 do art. 8º da Resolução do CNJ, o juiz também deverá ponderar sua decisão a partir de situações como gravidez ou existência de filhos ou dependentes sob cuidados da pessoa presa em flagrante delito, histórico de doença grave, incluídos transtornos mentais e dependência química, assim como fazer o encaminhamento assistencial do autuado conforme o caso.

O juiz, por fim, deverá analisar a prisão sob o aspecto da legalidade e a regularidade do flagrante. Os possíveis desfechos são: concessão de liberdade plena; concessão da liberdade provisória com ou sem aplicação de medida cautelar diversa da prisão; decretação de prisão preventiva; ou, de acordo com a Resolução, “adoção de outras medidas necessárias à preservação de direitos da pessoa presa”.

Para o juiz Giovani Augusto Serra Azul Guimarães, de Ribeirão Preto, que desde 2016 já realizou cerca de duas mil audiências de custódia, a medida é desnecessária, uma vez que os mecanismos constitucionais necessários para garantir a excepcionalidade da prisão provisória e apurar eventuais violações aos direitos da pessoa presa sempre existiram, mesmo antes do advento das audiências de custódia.

“Sempre houve análise judicial imediata da situação do preso em flagrante, isto é, se ele pode aguardar a investigação e o processo em liberdade ou não. E os mecanismos de apuração de eventuais desvios praticados excepcionalmente por agentes policiais sempre funcionaram, a exemplo da função correcional do Ministério Público, da atuação da Defensoria Pública e da OAB e das corregedorias das próprias polícias”, declara.

Para o magistrado, os principais problemas da medida estão relacionados à indução da falsa ideia de que, como regra, os agentes policiais cometem abusos durante a prisão de criminosos e ao significativo dispêndio de recursos materiais e humanos necessários à realização do ato, com transporte e escolta de presos. “Muitas vezes, esses presos são integrantes de organizações criminosas, e impõe-se à sociedade todo o prejuízo e insegurança decorrentes”.

Olavo Mendonça, especialista em segurança pública e major da Polícia Militar do Distrito Federal, endossa que o sistema criminal brasileiro já tem suas contramedidas a prisões violentas e arbitrárias. “Quando ocorre a prisão, a pessoa é levada à delegacia, fará o exame de corpo de delito e será ouvida. A identificação de problemas já era apurada nessa primeira fase”, afirma. “Quando se coloca mais um processo em que só se ouve somente o preso, o resultado é ter aumento da sensação de impunidade por parte dos criminosos. Muitas vezes, esses presos conseguem ser libertados usando o artifício de um suposto trato abusivo. Tem estados que soltam mais de 50% dos presos em flagrante”, aponta.

Para o juiz Augusto Bruno Mandelli, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que desde 2015 realiza audiências de custódia, a medida corresponde a um desvirtuamento do sistema de justiça.

“Todos os agentes públicos envolvidos na apuração do delito (policiais, delegados, promotores e juízes) passaram a ser suspeitos da prática de abuso ou de excessos. A sociedade, que anseia por leis penais rigorosas ao combate da criminalidade, acaba por ter suas expectativas frustradas (...). A audiência de custódia, inserida nesse contexto, se não provoca ela mesma a impunidade, fortalece o discurso que visa vitimizar o criminoso, criminalizar os agentes de segurança e escravizar a população de bem, corrompendo o corpo social por dentro”.

Apuração da conduta de policiais

De dezembro de 2015 a maio de 2021, houve 45,6 mil denúncias feitas pelos presos sobre maus-tratos que teriam sido cometidos por policiais durante a abordagem e prisão. A quantia equivale a 5,8% de todas as audiências. De acordo com a Resolução 213, havendo declaração de maus-tratos a partir do questionamento feito pelo juiz ao preso, “será determinado o registro das informações, adotadas as providências cabíveis para a investigação da denúncia e preservação da segurança física e psicológica da vítima, que será encaminhada para atendimento médico e psicossocial especializado”.

O servidor responsável pela coleta de dados do autuado passará, então, a uma série de apurações sobre o relato como: identificação dos supostos agressores (indicando sua instituição e sua unidade de atuação); locais, datas e horários aproximados dos fatos; identificação de testemunhas que possam colaborar para a averiguação do caso; e registro dos encaminhamentos dados pela autoridade judicial para requisitar investigação dos relatos.

Guimarães explica que após a declaração de maus-tratos, de acordo com a apuração posterior dos fatos muitas vezes identifica-se que alegação é infundada. “Ou seja, o percentual de casos de verdadeira violência ou tortura é certamente inferior ao das denúncias nesse sentido”, diz o magistrado.

“É preciso ter muita cautela para que, de um lado, os excepcionais abusos não fiquem impunes e, de outro, a honra e a dignidade dos agentes policiais cumpridores da lei não seja ofendida injustamente”, ressalta o juiz.

Mendonça explica que, durante uma prisão, muitas vezes o policial precisa usar força para algemar e conseguir transportar uma pessoa contra a vontade dela, porém o que deve ser apurado são os eventuais excessos. “É claro que há uma situação de força. Mas a polícia sempre teve em vista o que significa o excesso. Depois que a pessoa foi algemada e está sendo transportada, se ela foi vítima de alguma violência isso tem que ser apurado sim. Se forem identificadas lesões não condizentes com a prisão, aí é mandado para as corregedorias das polícias e é aberto um procedimento. Isso sempre foi apurado”.

O especialista em segurança pública cita que as audiências de custódia estão sendo um fator muito forte de desestímulo para os policiais que atuam nas ruas trabalharem de maneira proativa. “Eles estão prendendo e se arriscando e não está tendo efeito. Além disso, o policial ainda está sofrendo consequências”, diz. “É claro que se houver indícios claros de excessos, isso deve que ser apurado. O que não dá é ouvir apenas um lado da história, e justamente o do criminoso”.

Mandelli explica que há uma parcela de presos que, ao alegar ter sofrido violência policial, omite ter resistido à prisão. “Essa resistência, muitas vezes de forma violenta, obriga o policial a se impor com maior firmeza – sem abusos, obviamente”, diz o juiz. “Não deixa de ser curioso como muitas pessoas que desconhecem tanto o trabalho exercido pela polícia quanto a realidade do crime no Brasil sentem-se à vontade para dizer ao policial como ele deve agir diante de um criminoso armado, um traficante perigoso ou um assaltante, por exemplo”.

Audiências de custódia durante a pandemia

O CNJ é contrário às audiências por videoconferências, pois considera que a apresentação física do preso é fundamental para coibir práticas de tortura e maus-tratos. Devido às dificuldades impostas pela pandemia da Covid-19, entretanto, em 17 de março de 2020 o órgão publicou a Recomendação nº 62, em que orienta os tribunais e magistrados quanto a não realização de audiências de custódia “em caráter excepcional e exclusivamente durante o período de restrição sanitária, como forma de reduzir os riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus”.

Em julho, houve nova deliberação do CNJ sobre o tema, vedando que as audiências de custódia fossem realizadas mesmo por videoconferência. Em novembro, no entanto, o Conselho voltou atrás e aprovou uma resolução autorizando a realização das sessões por videoconferência, quando não for possível a realização do ato de forma presencial durante a crise de saúde decorrente da Covid-19.

Porém, com a derrubada de vetos presidenciais à Lei 13.964/2019 – o chamado Pacote Anticrime –, ocorrida em 19 de abril deste ano, a possibilidade de videoconferência nessas audiências foi novamente proibida. No dia seguinte à derrubada dos vetos, o senador Flávio Arns (Podemos-PR) apresentou o PL 1473/2021, cuja proposta é retomar as sessões por vídeo enquanto perdurar a pandemia da Covid-19. O Senado aprovou a lei na última terça-feira (18), e o texto segue agora para análise da Câmara dos Deputados.

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