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Caso João Alberto leva ONGs a buscarem acordos milionários em nome do antirracismo
Com valores obtidos no caso João Alberto, Educafro pretende criar escritório para processar mais empresas com pedidos milionários de indenização| Foto: Divulgação Educafro

Duas entidades ligadas ao movimento negro, a Educafro e o Centro Santo Dias de Direitos Humanos, receberão parte dos R$ 3,5 milhões em honorários advocatícios a serem pagos a sua equipe de advogados por terem participado do acordo extrajudicial com a rede Carrefour relacionado à morte de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, ocorrida em uma unidade da rede em Porto Alegre (RS) em novembro do ano passado.

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Em ação civil pública, as ONGs acusaram a empresa de não ter implementado ações contra o “racismo estrutural” que impedissem a morte do homem, que era negro, apesar de o inquérito policial não ter apontado relação direta do caso com discriminação racial.

Apesar de o pagamento não constar no acordo, a Justiça do Rio Grande do Sul determinou que a empresa pague às ONGs 3% do valor firmado no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Os R$ 115 milhões acordados serão destinados pela rede de supermercados a projetos antirracistas, conforme estipulado no TAC assinado em junho deste ano.

O êxito no acordo fez com que as ONGs ajuizassem novas ações contra outras grandes empresas e pedissem indenizações milionárias sob a acusação de serem lenientes com o “racismo estrutural”.

O valor a ser recebido em honorários é mais do que o triplo do que a viúva de João Alberto recebeu em acordo com a rede de supermercados. Apesar das cifras expressivas, a equipe de advogados das entidades busca na Justiça aumentar a quantia para até 20% do valor da indenização, o que a elevaria para R$ 23 milhões – o equivalente a mais de quatro vezes o valor de todas as indenizações destinadas pela rede de supermercados aos nove familiares do homem.

“O montante que está em discussão [de até R$ 23 milhões] é correspondente ao tamanho da vitória. Não há nenhuma razão ética ou legal para que advogados do movimento negro sejam obrigados a trabalhar gratuitamente, como escravos”, diz Márlon Reis, advogado da Educafro e do Centro Santo Dias.

Apesar de a atuação das duas entidades ter sido bastante criticada por outras organizações do movimento negro, segundo os seus diretores esse é só o começo de uma série de ações judiciais contra grandes empresas.

“A experiência acumulada no caso Carrefour permitiu à nossa equipe de advogados abrir processos contra outros supermercados pelo Brasil afora. E os processos também estão entrando no mesmo caminho. Estamos gastando toda a energia para serem transformados em TACs”, diz Frei David Santos, diretor da Educafro.

Ganhos serão destinados à construção de escritório para ONGs

Parte do valor a título de honorários será utilizado para que as duas ONGs construam um escritório próprio de advocacia. De acordo com o diretor da Educafro, o escritório terá como objetivo “ampliar cada vez mais a estrutura para botar mais e mais advogados atuando em prol do negro”.

Segundo o advogado Márlon Reis, uma parte do valor da indenização será destinado às ONGs como doação. Já o diretor da Educafro diz que a própria entidade fará a dispensação dos valores, e que uma “parte simbólica” será destinada aos advogados. “Eles gastaram dinheiro do bolso deles para nos defender. A gente quer devolver esse dinheiro que eles gastaram. Por primeiro vamos fazer nosso escritório, depois o que sobrar vamos compensá-los com pequenas quantias simbolicamente cobrindo o trabalho deles a serviço do povo”, diz.

O Carrefour não concorda com o pagamento dos honorários. A rede sustenta que o artigo 18 da lei da ação civil pública afasta tal pagamento nesse tipo de processo e recorreu da determinação judicial. A equipe de advogados das ONGs também recorreu, porém buscando aumentar o valor para entre 10% e 20% do valor da ação.

Participação das ONGS no acordo com a rede Carrefour

O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) foi assinado em junho deste ano pelo Carrefour junto a diversos órgãos do poder público, como o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) e a Defensoria Pública da União (DPU), com o objetivo de atrair recursos para projetos antirracistas e encerrar processos que tramitavam contra a rede relacionados ao caso.

A Educafro e o Centro Santo Dias também participaram da mesa de tratativas e assinam o documento. Na ação ajuizada em novembro do ano passado contra o Carrefour e a empresa de segurança que prestava serviços ao supermercado, as ONGs pediram R$ 100 milhões por “reparação de dano moral coletivo e dano social inflingido à população negra e ao povo brasileiro de modo geral”.

“(...) Não é preciso que a violência seja expressamente decorrente de ódio ou discriminação racial para se lhe reconheça o caráter racista: basta que ela se revele como reprodutora da violência sistêmica que comprovadamente se abate sobre a afrodescendência brasileira”, cita trecho da ação movida pelas ONGs.

Pelos termos do acordo, o supermercado se comprometeu a implementar um Plano Antirracista, que contempla, dentre várias diretrizes, treinamento aos funcionários sobre diversidade e direitos humanos, criação de canal de denúncias de discriminação e realização de um censo interno para identificar a composição étnico-racial e de gênero dos funcionários.

Parte dos R$ 115 milhões que o Carrefour se comprometeu a destinar será aplicado, segundo os termos do TAC, em projetos antirracistas a partir da contratação de entidades sociais ligadas ao movimento negro.

Novos processos movidos

A estratégia das organizações não se restringe a supermercados, e seus advogados têm direcionado a mira para empresas de outros setores – sempre empresas grandes e tradicionais, com condições de arcar com indenizações milionárias.

Em setembro, ambas ajuizaram ação civil com pedido de indenização de R$ 40 milhões contra a rede de lojas Zara após uma mulher alegar ter sido vítima de discriminação por parte de um funcionário da rede. Em agosto, as mesmas organizações processaram a XP Investimentos com pedido de indenização de R$ 10 milhões por dano social e moral coletivo pelo fato de a empresa apresentar pouca diversidade em seu quadro de colaboradores.

No início de novembro, as duas entidades também assinaram outro TAC, desta vez com a Vector, empresa de segurança contratada pelo Carrefour, cujos funcionários estiveram envolvidos na agressão e morte de João Alberto. O acordo, de R$ 1,8 milhão, possui termos parecidos com o TAC firmado com a rede de supermercados.

“Nós inauguramos uma nova fase que dá possibilidade de trabalhar com esse tema com amplitude muito maior a partir desse caso [João Alberto] e fazer novas ações nesse sentido, de melhorar essa condição no combate ao racismo estrutural”, diz Luciano Santos, presidente do Centro Santo Dias.

“A gente tinha ambições muito maiores, mas o que a gente conseguiu trouxe não só a experiência, mas a procura por demandas. Todos os dias temos novas demandas aqui, para que possamos fazer ações desse tipo”, prossegue.

Método é seguido por outras ONGs, segundo advogado

A atuação da Educafro e do Centro Santo Dias gerou críticas por parte da Coalização Negra por Direitos, que reúne cerca de 200 organizações. Em nota, o movimento cita que o acordo com o Carrefour se tratou de uma iniciativa que “precifica a vida de pessoas negras”.

Apesar disso, segundo Márlon Reis, algumas das entidades que se manifestaram contra o acordo no caso João Alberto já estão abrindo ações na Justiça e buscam negociações nos mesmos moldes - compensações financeiras por parte de grandes empresas a título de danos morais coletivos, além do pedido de honorários advocatícios sob os acordos.

“Algumas das entidades que apresentaram essas queixas, curiosamente, aprenderam conosco e passaram a fazer o mesmo. Algumas que questionaram a maneira como nós agimos no processo do Carrefour, moveram uma ação contra uma rede atacadista com pedido de indenização maior do que o nosso, além do pedido de honorários”, afirma Reis.

Em agosto, a Educafro e o Centro Santos Dias também ajuizaram uma ação civil pública contra a mesma rede atacadista e pediram indenização de R$ 100 milhões por danos morais coletivos devido ao outro caso envolvendo um homem negro. Ele foi obrigado a se despir para provar que não havia furtado itens do supermercado.

“Nós movemos também [processo contra a rede atacadista], mas essas outras entidades moveram outras ações com pedidos maiores. Não estou criticando. Estou comemorando o fato de elas terem aprendido. Elas saíram da condição de criticar para ter aprendido e ter buscado fazer o mesmo”, destaca.

Capitalização de movimentos sociais em episódios de racismo

A capitalização política e econômica por parte de movimentos sociais, entidades civis e demais atores políticos em denúncias de episódios de racismo não é motivo de preocupação apenas por parte de empresas. A pressão pública orquestrada por esses grupos, que ganha espaço nos veículos de imprensa, pode fazer com que casos em que não houve comprovada injúria ou discriminação racial tenham seu “veredito” determinado por pressão dessas entidades.

Para David Leal, advogado de um dos seguranças indiciados no caso João Alberto, o episódio em questão tem relação com violência, mas não com racismo. Ele argumenta que o caso não foi pautado pela questão técnica, mas pela pressão política relacionada ao fator racial que se deu pelo contexto da época do ocorrido, véspera do Dia da Consciência Negra, e pela capitalização de movimentos sociais e políticos em torno do segundo turno das eleições municipais.

“Foi um caso de violência, porém muito distante da questão racial. O caso tem uma importância nesse sentido por chamar para a pauta política o assunto do racismo. Mas o episódio só teve a repercussão que teve porque estávamos numa época de eleição e todas as forças políticas estavam engatilhadas. Qualquer movimento seria o gatilho para movimentações de grande envergadura, como de fato ocorreram”, diz o advogado.

“Nessa época do caso João Alberto também ainda se estava discutindo muito o caso George Floyd, e pretendeu-se tornar esse um caso análogo àquele. Infelizmente, a polícia não buscou elucidar realmente o fato, foi atrás apenas de uma hipótese, a que já estava predefinida por conta da pressão pública e política. Naquele grande ‘tsunami’, ir contra aquela onda toda seria praticamente suicídio”, afirma Leal.

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