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Uma das essências do carnaval é a inversão dos papéis sociais: o rei se veste de mendigo, o mendigo de rei; quebram-se as hierarquias do mundo e, durante um curto período de festa, o mundo é remodelado à imagem das fantasias e sonhos. Na Idade Média, um período milenar de opressões que criou sua contraparte carnavalesca, essa inversão tinha uma função momentaneamente demolidora – o carnaval era o avesso paródico da missa, dos rituais sagrados e seculares, dos poderes terrenos e da certeza da morte. A substância do carnaval antigo é a rua e seu movimento espontâneo, que hoje se perdeu quase inteiramente na oficialização, na organização de Estado, no controle cuidadoso do tempo, da imagem e dos desfiles. A ação simbólica passa a ser mais uma representação formal de superfície que um impulso transgressor carregado de emoção.

Pois o futebol – e especialmente em eventos monumentais como a Copa do Mundo – guarda uma semelhança profunda com o carnaval e com tudo que ele põe em xeque. Talvez esteja substituindo-o como autêntica festa coletiva, e em escala mundial. A atração pelo futebol tem sempre duas direções. O Estado vê nele um útil "ópio do povo", e quer manipulá-lo em defesa de seus interesses. O futebol, na visão do poder, transforma-se numa concessão do governo, num presente para o povo, e, quando bem-sucedido, numa autopropaganda de grande alcance. Já a Fifa administra o caldeirão bilionário dos jogos simulando que se trata apenas de uma inocente diversão esportiva a ser levada com fair play.

Mas há a força contrária: para o povo, o futebol é a afirmação de si mesmo, e não do poder de Estado – na verdade, quase sempre é a nação que se afirma contra o poder do Estado. Um bom exemplo é o Irã. Para os aiatolás que passaram a dominar o país desde 1979, o futebol era um esporte perigoso que deveria ser duramente reprimido. Mulheres foram banidas dos estádios – e até mesmo proibidas de assistir a jogos pela tevê. Não deu outra: o futebol passou a ser a ponta de lança de uma revolução cultural, e a contragosto o governo se viu obrigado a ceder, primeiro liberando as mulheres para assistir aos jogos pela televisão, e enfim permitindo sua presença nos estádios. Para um iraniano, a dura resistência contra a Argentina num jogo em que lhe garfaram um pênalti tem um sentido que vai muito além do jogo em si. Gana empatar com a Alemanha e a Costa Rica bater na Itália são inversões poderosas da "ordem do mundo". Para países como Bósnia, Sérvia ou Croácia, recriados na implosão sangrenta da Iugoslávia, o futebol é uma afirmação da autoestima e a marca da diferença, com pesadas implicações políticas. E no Brasil? Bem, entre nós a força carnavalesca do futebol escancara-se todo dia.

Isso posto, tiro minha máscara fajuta de antropólogo de boteco, abro uma cerveja e vou ver Itália e Uruguai, que tem tudo para ser um jogão.

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