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Às vezes, uma leitura se preserva durante décadas não exatamente pelo que estava escrito, mas pelas circunstâncias e pelo espírito do tempo, que se marcam como pontos de referência de uma vida inteira. Lembro que li Viagem ao centro da terra, de Júlio Verne, num dia 26 de dezembro, atravessando a madrugada dos meus 13 ou 14 anos, até que se virasse a última página. Como queria o autor, vivi a sensação de conhecer a Islândia e sua capital, Rejkjavik, e o herói do livro, Arn Saknussen, um nome avulso que vem me acompanhando, com seu exotismo sonoro, como uma palavra mágica – Saknussen! – por mais de 40 anos. Já o livro O signo dos quatro, de Conan Doyle, com uma aventura eletrizante de Sherlock Holmes e uma capa vermelha encadernada, está inextricavelmente ligado a uma carteira escolar do Colégio Estadual, escondido sob o caderno de latim; em vez de decorar declinações, como devia, eu acompanhava a lógica implacável do detetive decifrando a palavra "rache", escrita com sangue na parede do quarto onde jazia um cadáver. Às vezes as lembranças vêm em duplas: Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski, e Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez estão ambos no mesmo compartimento da memória: um alojamento da Escola de Marinha Mercante, no Rio de Janeiro, em 1971, em leituras noturnas durante a guarda da meia-noite às quatro.

Outra dupla marcante foi a dos livros O senhor das moscas, de William Golding, e O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati – eles não têm absolutamente nada em comum, exceto o fato de terem sido comprados no mesmo dia e devorados na mesma semana, numa casa de madeira à beira da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, em 1984. Tão forte foi a impressão dessas duas obras-primas que até hoje, sempre que penso em uma delas, me lembro da outra. O livro de Golding refez meu imaginário romântico sobre as crianças; e o de Buzzati colou-se à minha alma como uma metáfora da universidade, em que eu entrava naquele ano como professor auxiliar.

O romance A consciência de Zeno, de Ítalo Svevo, está indissoluvelmente ligado na minha memória à cidade de Antonina e às minhas tentativas de deixar de fumar, já aos 20 anos, como um velho precoce. Também de lá vem a lembrança de O imoralista, de André Gide – um pequeno livro de bolso ensebado da editora Bruguera, e com ele nas mãos ouço a voz do mestre barbudo W. Rio Apa, comparando-o com O estrangeiro, de Albert Camus, lido à mesma época. Infância, de Graciliano Ramos, vem à memória num trem para Morretes, lido num vagão de segunda-classe com os bancos vermelhos de ripas, que deixavam o traseiro do freguês igual a uma carambola.

A trilogia Sexus, Nexus e Plexus, de Henry Miller, comprada num sebo, me lembra a escada do prédio de casa, que subi de quatro em quatro degraus, para devorá-los às escondidas – naqueles tempos inocentes, sexo se aprendia com literatura.

Cristovão Tezza é escritor.

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