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No clássico 1984, de George Orwell, a pessimista distopia sobre um mundo totalitário que controla o cidadão em cada gesto, existe um "Ministério da Verdade". Sua função? Mentir. O Ministério da Verdade é encarregado de modificar a história passada de modo a deixá-la de acordo com a vontade do poder. Os números antigos de jornais e revistas são sempre modificados; estatísticas alteradas; discursos omitidos; e até mesmo o sentido das palavras sofre uma aguda vigilância. A "novilíngua" é uma máquina semântica de achatar significados. Bem, o Brasil não precisa se preocupar. Para quem já tem um "Ministério da Pesca", não há necessidade de alegorias complementares. E, felizmente, temos liberdade absoluta para rir, que faz bem à alma.

O assustador delírio ficcional de Orwell me veio à lembrança ao ler que um procurador do Ministério Público Federal entrou com uma ação contra... contra quem mesmo? Contra o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. O motivo: em suas acepções para a palavra "cigano", o dicionário, depois de listar as definições correntes, anota as de sentido pejorativo: "trapaceiro", "velhaco", colocando a data (1899) em que este uso é documentado na língua pela primeira vez. Para o Ministério Público, esta definição seria ofensiva, preconceituosa, de cunho racista. Sim, e é mesmo; justo por isso, o dicionário informa o leitor de que se trata de um sentido pejorativo. É exatamente esta a função de um dicionário da língua: anotar os usos concretos da língua, em seus momentos históricos. Tanto melhor ele será quanto mais definições contemplar, e o Houaiss é um dicionário extraordinário para a cultura brasileira – é o nosso primeiro grande dicionário, elaborado com um padrão de exigência e com um ouvido para a vida real da língua como nenhum dos antecessores. Mas, para o procurador, a quinta acepção que o dicionário registra ao definir "cigano" afrontaria a Constituição brasileira.

A acusação não é apenas absurda; é perigosa, pelo seu precedente de controle da linguagem. Assim, chegaremos à "novilíngua" de Orwell. Se o leitor consultar no mesmo Houaiss, por exemplo, a palavra "polaca", verá que ela define, pela ordem, a mulher nascida na Polônia, a dança chamada "polonesa", a Constituição do Brasil promulgada em 1937 (era chamada de "constituição polaca" por seguir a linha da Constituição da Polônia); e, finalmente, com a indicação de uso "pejorativo" e "obsoleto", o dicionário registra que "polaca" pode ser "mulher da vida", "meretriz". Esta acepção surgiu no final do século 19, designando as vítimas ("loiras", daí o nome "polacas") do tráfico de mulheres da Europa para o Brasil. Se a moda pega, o novo Ministério da Verdade logo vai propor varreduras semânticas e fogueiras purificadoras. O meu medo é que, de grão em grão, excomunguem A polaquinha, obra-prima de Dalton Trevisan.

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