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| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A língua pode ser um poderoso instrumento de poder e demarcação da hierarquia. Intencionalmente ou não, foi isso que o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), demonstrou na segunda-feira. Visivelmente irritado após a ação da Polícia Federal contra policiais do Senado na sexta passada, Renan disse: “Um juizeco de primeira instância não pode a qualquer momento atentar contra um poder. É lamentável que isso aconteça num espetáculo inusitado que nem a ditadura o fez”.

Essas duas pequenas frases revelam muito de como grande parte dos políticos e das autoridades pensa. E, indiretamente, elas guardam uma das grandes discussões do país: a luta para que todos realmente sejam iguais perante a lei.

Renan tem todo o direito de criticar o juiz. Mas, ao usar o termo “juizeco”, procurou diminuí-lo. E mostrou como vê os magistrados de primeira instância: servidores públicos “menores”, de segunda categoria, sem moral para ousar tocar no Senado – um órgão formado por gente “superior”.

Ao usar o termo “juizeco”, Renan procurou diminuir o magistrado que autorizou a operação policial

É sintomático que, por outro lado, os senadores se tratem entre si de “vossas excelências”. A expressão foi herdada dos tempos da monarquia, quando havia a clara distinção na lei entre nobres e plebeus. Outras autoridades públicas também apreciam os pronomes de tratamento que os diferenciem dos demais cidadãos. Curiosamente, os juízes (alvo momentâneo da ira de Renan) são os “meritíssimos”.

Apenas como comparação: nos Estados Unidos, autoridades públicas e cidadãos costumam se tratar indistintamente por “you” (expressão equivalente ao nosso “você”). Os norte-americanos historicamente prezam muito mais o princípio da igualdade de todos diante da lei do que os brasileiros. E isso se manifesta no modo como falam.

A declaração de Renan embute outro grande debate da atualidade sobre a igualdade de direitos: o foro privilegiado para autoridades. Ao dizer que um juiz de primeira instância não pode atentar contra um poder, o presidente do Senado defendeu que a Casa só pode ser alvo de uma investigação autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – a corte responsável pelos casos que envolvem senadores e deputados.

Há uma primeira discussão envolvida aí. Em princípio, a investigação é apenas contra policiais legislativos e não contra senadores. Como Renan vai levar o caso ao STF, caberá ao Supremo normatizar se suspeitas que envolvem servidores da Casa a serviço de parlamentares também são abrangidas pelo foro privilegiado.

O fato é que isso pode levar o país a criar uma nova categoria a ter direito à prerrogativa de foro: os servidores de parlamentares. E já não são poucos os beneficiados no país: estima-se que atualmente 22 mil ocupantes de cargos públicos tenham foro privilegiado. E, caso o STF amplie o benefício, faria isso num momento em que o país debate fortemente a necessidade de extinguir ou limitar a prerrogativa de foro – um direito que, na extensão em que existe no Brasil, colide com o princípio de que todos são iguais perante a lei.

Há, finalmente, uma última nuance nas entrelinhas da declaração de Renan. O presidente do Senado, ao tentar desqualificar o juiz, parece indicar que sente saudades dos tempos da ditadura militar: segundo ele, nem os generais tiveram a ousadia de atentar contra o Senado. É uma mentira: o Congresso chegou a ser fechado pelos militares entre 1968 e 1969 – algo muitíssimo mais grave. Outro detalhe histórico importante: o foro privilegiado para deputados e senadores no STF foi instituído pela primeira vez no Brasil justamente pela ditadura, após esse fechamento do Congresso.

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