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“Mer...cadoria!” Quem nunca teceu comentários mundanos imediatamente após o encontro nada amistoso da quina da cama com o dedo mindinho do pé? Dependendo do estrago, estraga o dia. Aquela diminuta parte latejante do nosso ser parece tomar conta de tudo. Até dos pensamentos. “Quem colocou essa cama aí?”, você se questiona. Ela sempre esteve ali, é lógico. Mas nessas horas a lógica deixa de fazer sentido. E ainda dizem que é a cabeça quem controla o corpo... Nesses dias, é o dedo. Intelecto que nada.

Aliás, até mesmo o intelecto mais respeitado do mundo – o de um físico que conheça tudo sobre o Big Bang, quarks e bósons, por exemplo – desconhece todos os mistérios de seu corpinho. Nada que jogar uma inocente partida de futebol no fim de semana, depois de muito tempo de inatividade, não resolva. Na manhã seguinte, ele descobre músculos que não imaginava ter. Ai, ui: a dor é pedagógica.

Brincadeiras à parte, o fato é que, apesar de tudo na vida (absolutamente tudo) girar em torno do corpo, ele ainda é uma espécie de primo pobre da mente. OK, muitos dirão o contrário: o corpo, sobretudo o corpo sensual, é muito mais valorizado que a capacidade intelectual nos tempos atuais. Mas há o outro lado da moeda. Ao mesmo tempo, o corpo dito feio é desprestigiado e o sensual, alvo de críticas por ser mais valorizado que a cabeça pensante. Jogo jogado e ficamos no 2 a 1. Contra o corpo.

Tirar a Educação Física do ensino deixa no ar a ideia de que o corpo é secundário

A proposta de tirar a obrigatoriedade da Educação Física do ensino médio vai por esse caminho. O governo voltou atrás. Mas fica no ar a velha ideia de que conhecer o próprio corpo é secundário. Que o importante é a mente. Não que não seja. É que não é só isso que importa.

Já faz um tempinho que as coisas são assim. Uns 2,5 mil anos. Platão foi quem lançou, na história do pensamento, a divisão insolúvel de corpo e mente: um comanda, o outro obedece. Ele também estabeleceu a concepção de que o corpo é um fardo que impõe limites para o intelecto buscar o conhecimento verdadeiro. Dizia ele: os cinco sentidos nos pregam peças; a razão não.

Na Idade Média, a religião também subordinou o corpo à alma/mente. E as sensações corporais passaram a ser vistas como pecado.

A modernidade não foi muito diferente. A mente sempre em primeiro lugar, separada do corpo. Grande expoente desse período, René Descartes chegou à conclusão de que, mesmo que vivesse numa espécie de Matrix que enganasse seus sentidos, não poderia ser enganado de que pensa. Daí saiu a máxima que quase todo mundo já ouviu algum dia: “Penso, logo existo”. Ou seja, a razão/mente é a fonte da identidade humana e do conhecimento seguro. O corpo, dos enganos.

Uma consequência desse pensamento é que a matemática – a lógica pura, isenta dos equívocos sensoriais – passou a fundamentar o conhecimento. Isso é o que chamamos de cartesianismo. Foi a base do desenvolvimento de toda a ciência. Sobre isso, nada contra. Mas, por outro lado, contribuiu para valorizar a ideia de que a educação tem de ser intelectual (o que é correto) e não corporal (o que não é certo).

A questão é que muitos pensadores e pesquisadores contemporâneos questionam severamente a divisão radical corpo-mente que a tradição nos legou e, consequentemente, suas implicações. Dizem que não dá para dividir um do outro.

Em linhas gerais, é o seguinte: o conhecimento nunca só é mental, mas um processo que envolve a aquisição de informações pelo corpo em sua relação com o meio. E, antes mesmo que tenhamos alguma consciência racional acerca de nós, percebemos pelo corpo que somos diferentes do mundo. Afinal, crianças pequenas, que ainda não desenvolveram capacidade de formular conceitos racionais, têm percepção de si. Elas contrariam Descartes: não precisam pensar para saber que existem.

Dito assim, parece óbvio. Tão óbvio como saber, antes de pensar, que meu mindinho se encontrou nada amistosamente com o pé na cama. Mas o óbvio nem sempre é tão óbvio assim...

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