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Diante da notícia de que a expectativa de vida do brasileiro deu novo salto, passando para 72,8 anos, Natureza Morta fez uma careta de quem caminha para a segunda divisão do Brasileiro:

– Quer dizer que vem prorrogação, e teremos de aguentar os chatos por mais tempo ainda?

Beronha, que dava uma "chegada rápida" na mansão da Vila Piroquinha, visitinha que geralmente começa com a fresca da tarde e termina na madrugada, fez que não era com ele. Afinal, nosso anti-herói anda muito atarefado. Decidiu-se por algo "impactante", virar escritor.

– Se todo mundo neste país está virando um, não bastando mais, pelo que parece, ser o que se é profissionalmente, como juiz, desembargador, esculápio ou ferrabraz, por que não eu? Passarei a me identificar como "iconoclasta e escritor".

Aliás, o propósito da "breve" visita era mostrar as duas primeiras páginas – de caderno sessenta folhas (essa é em homenagem ao professor Jaci) – da "obra" que começou a escrever em trivial exercício de simples inspiração, aliás.

De cara, Natureza gongou o título: Autobiografia Precoce.

– Já tem "dono", o poeta russo Eugênio Evtuchenko, cuja Autobiografia Precoce foi lançada no Brasil em 1960, e que, na página 72, confessa: aprendeu desde a infância que "o capital mais precioso é a ternura". De onde tirou a "sugestão" do nome?

– Orelha de livro, ora. Você sabe, faço leitura dinâmica... Tão dinâmica que pulo da orelha inicial para a orelha do fim. Achei que é deveras "impactante". E "priorizei" a ideia.

De qualquer modo, Natureza ficou com o bosquejo da tal biografia e deu uma espiadela nas anotações do cotidiano beronhístico, raso de coisas das quais possam de fato advir algum impacto:

– O cara mais educado do mundo é o panfleteiro: dá "bom dia" e "boa tarde" pra todo mundo que passa. E ainda diz obrigado.

– O sujeito que insiste em dizer "tô indo" geralmente é o último a ir embora.

– "Tem gente!" A exclamação mais comum no país ganhou uma inesperada versão em inglês. Um amigo estava no trono de uma lanchonete, nos EUA, quando começaram a mexer no trinco e a balançar a porta. Desespero duplo. O camarada do vaso tratou de lançar o tradicional alerta, agora transposto para uma possível linguagem universal.

– Tem people!

Natureza encerrou a leitura, desejando boa ventura ao diletante iconoclasta e escritor. Ou seria um iconoclasta como escritor? Mas, admitiu, pelo menos não será mais um livro de autoajuda. Suspirou aliviado e procurou o tal sono dos justos. Sono com direito a súbitas interrupções por conta do próprio ronco quando ele atinge horários de pico.

Antes, porém, de se entregar de vez aos braços de Morfeu (epa! bradaria o lado machão do Beronha), lembrou de Dalton Trevisan (en)contra o paranismo, do jornalista Luiz Cláudio Soares de Oliveira, um belo estudo que merece ser lido. Em certo ponto, ao transcrever uma crítica da revista Joaquim (1940), mostra que o nosso Vampiro já era genialmente implacável. Ou implacavelmente genial. Dalton (não Danton, como acreditavam alguns, e isso nos dias presentes), ao se referir a um autor, sentenciava: "O sr. Monteiro Lobato, ainda em vida, é um autor póstumo".

Em tempo: o livro é da Coleção A Capital, Travessa dos Editores.

Francisco Camargo é jornalista

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