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 | Foto: Antônio More/Gazeta do Povo / Ilustração: Benett
| Foto: Foto: Antônio More/Gazeta do Povo / Ilustração: Benett

Os relógios de Curitiba foram assunto – no chute – de pelo menos uma centena de reportagens e crônicas, sei lá, de 1930 para cá. Em se tratando de tema batido, perde só para a Guerra do Pente e para a neve de 1975. Tenho na memória uma dessas matérias, publicada no jornal Folha de Londrina nos anos 1990. Era parecida às outras, exceto por registrar o tour de Cristovão Tezza pelos big ben da cidade. Saber do número de ponteiros zanzando por aí impressionava o cidadão distraído, mas nada se comparava a suspeitar que o escritor, então um anônimo, poderia um dia ter consertado aquele nosso Omega ou Citizen comprado a duras prestações.

Faça o teste: nos sites de procura, a palavra “Tezza” vem quase sempre associada a “ex-relojoeiro”, profissão que chegou a exercer, antes de conseguir pagar suas contas com boa literatura. A insistência dos repórteres em frisar esse dado da biografia do autor de O filho eterno sugere haver algo entre o ofício meticuloso de consertar relógios e a arte de engrenar palavras. Faz sentido. Sem dizer que a figura do relojoeiro é pura penumbra. Equivale em mistério à dos monges copistas da Idade Média, o que só faz crescer a aura do escritor. Para a maioria dos mortais, passar o fio pelo buraco de uma agulha é por si só uma proeza olímpica, que dirá encaixar uma nano roldana com ajuda de uma pinça tamanho smurf. Só pode ser tarefa para predestinados, tanto quanto escrever.

Ok – essa conversa mole mora nas caixas de naftalina e traz como efeito colateral bocejos em série. Diz-se que as novas gerações não usarão mais relógios de pulso, agora substituídos pelos multifuncionais celulares, esses exterminadores do futuro. Os relógios públicos – se assim se pode chamar – terão a mesma sorte. A contar pelo que se vê nas ruas, a profecia está correta. O relógio da torre da Catedral pode pirar à vontade, ninguém lhe dá bola. O “relógio de sol”, também na Praça Tiradentes, é para muitos mais esotérico que um registro Pré-Colombiano no Caminho do Peabiru. Os relógios instalados em totens digitais, ainda que modernos, não merecem crédito. Pesa contra o fato de nunca acertam a temperatura, que dirá as horas.

De marco urbano numa das principais vias comerciais da capital, o relógio alemão virou alvo de desocupados, sempre prontos a lhe atirar pedras, só por sarro.

Em meio às ruínas que parecem reservadas aos grandes e pequenos relógios, um deles, ao menos, é merecedor de compaixão: o relógio da fachada da Relojoaria Raeder. Sim, aquele verde ardósia. Trabalhou de graça mais de um século, desde sua importação de Leipzig, em 1895. Teria passado por três endereços – dois deles na Rua das Flores e o definitivo na Riachuelo, 54, esquina com a Tobias de Macedo, na atual construção, datada de 1925, mas para onde a relojoaria se mudou em 1937, depois de idas e vindas. Nos últimos 14 anos está ali apenas de enfeite. Nos tempos da vovó, conta-se, os fregueses voltavam para reclamar quando o relógio recém-arrumado na Raeder não estava igual ao que estava na frente da loja.

De marco urbano numa das principais vias comerciais da capital, o relógio alemão virou alvo de desocupados, sempre prontos a lhe atirar pedras, só por sarro. Para salvá-lo, os donos o mudaram de posição, sem sucesso. Mal sabem esses pentelhos que visitar o maquinário que fazia o relógio da Raeder funcionar ficava exposto à visitação, dentro da relojoaria, maravilhando os amantes da técnica. Era todo aparente, com engenhoso sistema de contrapesos, uma diversão e tanto para quem ia ao Centro da cidade – mesmo quando o Restaurante Graxaim, em frente, já lhe fazia concorrência desleal.

A quem interessar possa, o misto de roldanas e cordas do maquinário hoje descansa em paz na casa de um dos herdeiros, a salvo da ignorância, mas longe dos olhos e do coração de quem passa. Menos mal, está para começar o restauro do prédio da Raeder, uma beleza. De acordo com o historiador Marcelo Sutil, no período da construção, o local – o primeiro com sacadas projetadas – foi chamado de “futurista” pela imprensa. Trata-se de um dos melhores exemplares da primeira fase da art déco, de linhas sóbrias, nos moldes da arquitetura fascista. Em meio ao anúncio das obras, está saindo das gavetas a história da família, do comércio e do relógio que informou horas para gerações de pedestres – muitos deles, por certo, fugindo do nosso friozinho das seis da tarde.

A proeza é do arquiteto, urbanista Leandro Nicoletti Gilioli [foto], uma daquelas fontes dignas de serem agarradas pelo calcanhar. Restaurador, Leandro está associado ao salvamento de construções como a Casa Hauer, o Edifício Eduardo VII, a mansão Lindroth (“Casa do Bispo”) – atrás do Shopping Mueller – e, mais recente, ao sobrado lindeiro ao hoje extinto Teatro Hauer, na Mateus Leme com a 13 de Maio, onde foi fundado o Coxa na aurora de 1909. Parte desses trabalhos assinou em parceria com a ex-sócia Ivilyn Weigert.

Os Raeder procuraram Gilioli para encomendar o “levante” do prédio. No embalo, os herdeiros Roberto, Ingrid e Oscar estão lhe contando o que sabem – e o que sabem pode fazer o número 54 da Riachuelo um ponto de parada, que tal?, para os ônibus de turismo, escolas e gente interessada no mundo. É preciso prestar atenção para não se confundir nessa trama com a quantidade de personagens com os nomes de Carl e Roberto, que se repetem, qual Manuéis e Joaquins.

Irmãos, os alemães Carl e Roberto Raeder, os pioneiros, chegaram em Curitiba no ano de 1891. Fundaram a relojoaria em 1893 e tudo ia bem até 1907, quando Carl decide voltar para a Alemanha, deixando a seu mano a tarefa de dar cordas sozinho. O desfecho da viagem de Carl é um mistério de Agatha Christie. O navio em que estava sofreu uma colisão seguida de naufrágio, no caminho entre Paranaguá e Santos. Como seu corpo nunca foi localizado, suspeita-se que pode ter chegado à Europa, de onde nunca mandou notícias.

Enquanto isso, o filho de Roberto – também chamado Carl – fez jus ao “C” ainda hoje gravado na vitrine. Daquela esquina, viu o século 20 passar, do bonde ao Expresso, que por tempos circulou ali, para desgraça geral. Começou a atender no balcão em 1929, assumiu a gerência em 1942, justo quando os efeitos da entrada do Brasil na Segunda Guerra geraram um surto de antigermanismo na capital. Tendo hospedado num dos quatro apartamentos dos andares superiores um sobrinho de nome – adivinhem – “Carl”, suspeito de simpatizar com o führer, o relojoeiro chegou a ser levado para depor, tendo de provar que ele era ele mesmo.

Carl, o que aqui interessa, trabalhou na Raeder até 17 de novembro de 2002, somando 73 anos de expediente, quando foi convencido de que seu tempo tinha acabado. Em 18 de novembro, dia seguinte à aposentadoria compulsória, morreu. Era nonagenário, figura típica do Centro, um tipo que recebia acenos dos figurões e das trabalhadoras da Riachuelo. Com seu desaparecimento, o relógio da fachada – do qual foi guardião – também encerrou o expediente. A relojoaria somou 109 anos de serviços e sua sede virou brechó. O “colosso de Leipzig” ficou ali, ao sabor das pedradas e da fumaça dos carros, com os ponteiros parados, ao que parece, às 8 da matina, agora, oficialmente em CWB, a hora do adeus.

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