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 | Foto: Daniel Castellano / Arte: Ricardo Humberto
| Foto: Foto: Daniel Castellano / Arte: Ricardo Humberto

Em 18 de abril de 1939, o dentista catarinense João Mariano dos Santos Jú­­nior e a dona de casa Di­­norá Moelman tiveram filhas gê­­meas e as batizaram de Marta e Maria, igualzinho às irmãs do Lázaro, o da Bíblia. Se bem entendi o que dizem as escrituras, en­­quanto Maria fazia o tipo "toda ouvidos", deixando o batente pa­­ra depois, Marta trabalhava feito uma voluntária nos campos de re­­fugiados de Darfur. De modo que quando se quer dizer que uma mulher é trabalhadeira o certo seria falar "fulana é uma Marta" e não "fulana é uma Maria".

O que se vai ler a seguir é a his­­tória de Marta, a filha do doutor, uma verdadeira Maria.

As gêmeas de Camboriú fizeram jus ao nome de pia. Maria, da qual sei quase nada, era tal e qual sua xará de Bethânia, na Ter­­ra Santa. Hoje vive pertinho de Nos­­so Senhor. Marta, aos 71 anos, não tem sossego. Volta do serviço às duas da madrugada e às 7 da matina está de pé, para re­­gar a horta e dar de comer ao cachorro Duque e aos gatos Fred e Tammy. Reza o mantra: "Vou trabalhar até quando meus dois patrões deixarem, o daqui da Terra e o lá de cima".

A mulher tem seus motivos. Eis o caso: quando jovem, durante uma viagem a Papanduva, em Santa Catarina, a guria bem nascida conheceu o pedreiro com nome de personagem de Mario Vargas Llosa: Matias Ma­­to­­­so, a seu dispor. Casou-se com ele, deixando para trás os regalos da casa paterna e tendo pela frente a despensa vazia e o choro dos filhos.

"Escolheu marido, agora aguente" – ou­­viu. Mas aquilo não era vida. Um dia, sem pedir licença ao seu Matoso, foi à luta. Primeiro, tentou ser varredora de rua da extinta Terpa Li­­pa­­ter. Em segundo, co­­zinheira num restaurante da André de Bar­­ros. Nada. Depois ba­­teu na porta da Viação Nossa Se­­nhora do Car­­mo, can­­didatando-se à vaga de cobradora de ônibus. "Vocês não vão se arrepender", profetizou ao Maia, aquele que lhe estendeu a mão.

Bom, lá se vão 35 anos de lida, 30 a bordo da Linha Itamaraty, um percurso que dura 20 minutos não mais. Parte do Terminal Hauer, passa pela ruas Waldemar Kost, Paulo Setúbal, Evaristo da Veiga, Antônio Rebelatto, vira uma via "de nome engraçado", seguindo pela Waldemar Lourei­­ro até a João Kasdorf.

No turno da noite, o Itamaraty é o palácio onde reina a senhorinha miúda – 65 quilos desde os tempos de Camboriú/Papanduva e cabeça branca que nunca conheceu pintura. É a Marta, a seu dispor. Arrisca ser mais co­­nhecida pe­­las bandas do Xaxim do que o ex-vereador João De­­ros­­so. Não é pouco: o Xa­­xim é o sexto maior bairro de Cu­­ritiba, com 60 mil habitantes e crescimento de 3,2% ao ano – espicha mais do que a Água Verde e o Portão.

Dia desses, um dos 14 netos da co­­bra­­dora recebeu a seguinte mensagem no Orkut: "Não creio, você é parente daquela senhora do Ita­­ma­­raty, a ‘velhinha nota 10’?". Não causa es­­panto. A mu­­lher chama Deus e o mundo de "meu anjo", é a loucura da petizada e o ombro amigo das Marias desencantadas, que no chacoalhar do coletivo lamentam seus próprios Matias e Matosos.

Mal sabem da Marta, que pouco se queixa. Não é da sua natureza. Há uma década tenta terminar a casa de oito peças em que mora com a filha Loisemery e uns netos. Empenhou nas paredes e nas lajes a aposentadoria, os R$ 700 por mês, o anuênio que recebe na firma. Para terminar a obra, "Marta, Marta", vai para a lida.

Mês folga sábado, mês folga domingo.Nos momentos de barde, abre uma cervejinha, escuta João Mineiro e Marciano e se dá o direito de ver a vida passar na Rua Teodomiro Furtado, seu en­­dere­­ço. É seu dia de Maria – que tédio. Cá entre nós, ela gosta mesmo é de ser Marta. A bordo da viação, tem notícias da Nair. Se houver jogo de futebol, sente frio na barriga. E se der assalto no lotação – já passou por 11 – não se afoba. O garoto torto há de lhe chamar pelo nome: "Me desculpe, dona Marta – mas me passe a grana..."

Eis um privilégio de poucos.

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