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 | Henry Milleo/Gazeta do Povo
| Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo

Tempos atrás, em entrevista, o ator, diretor e roteirista Miguel Falabella foi questionado sobre os personagens que criou para a série Pé na Cova. Onde teria se inspirado para criar tipos tão insanos como a “pancada” Luz Divina ou a doida Adenoide?

Embora não lhe faltasse latim para tanto, Falabella dispensou o socorro das teorias que sustentam não haver nada na ficção que não exista na realidade. Limitou-se a responder que nasceu na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, endereço de aves humanas raras. Foi seu laboratório. Nenhuma das figuras do seriado lhe era estranha. Conheceu-as, em outras versões. De quebra, sugeriu haver nos desformatados algo mais do que exotismo. Admira neles, sobretudo, a capacidade de resolver os problemas do cotidiano, sem que para tanto seja preciso arrancar os cabelos. Fossem da classe média, iriam se entregar aos frascos e comprimidos, aos divãs, às dramatizações canastronas, dignas de uma Lava Jato.

Faz sentido. Li que o arquiteto e urbanista italiano Bernardo Secchi costuma vir ao Brasil para visitar favelas. Não o faz por questões humanitárias, mas interesseiras. Ocupações irregulares são uma fonte de soluções que costuma usar em projetos europeus. Impressiona-o, por exemplo, a capacidade dos deserdados em produzir tecnologia, sei lá, com as migalhas de uma tábua ou com a câmara velha de uma bicicleta. Tanto quanto, Secchi gosta de admirar, entre os mais pobres, o talento invulgar para administrar conflitos, na base do rebolado.

Certa feita, recolhi impressão parecida ao conversar com Pedrinho Pedreiro, um empregado da construção civil que praticava cross dressing nas horas vagas. Ele se veste de mulher. Quando o hábito veio à tona, houve sururu na modesta Vila Camargo, bairro do Cajuru. Deu em nada. Em vez de demiti-lo por esquisitice, o dono da firma em que Pedrinho trabalhava chamou a classe operária para um tête-à-tete. Foi curto e grosso: não queria tiração de sarro com aquele que era seu melhor braço. A turma respeitou.

A mulher de Pedrinho, claro, não gostou da publicidade dada ao caso. Como não queria mandar o pai de seu filho para o quinto dos infernos, mostrou-lhe o caminho do puxadinho dos fundos. Que se ajeitasse por ali. Hoje, volta e meia ela abre o portãozinho que leva à edícula, sobe a escadinha de cimento bruto e empresta saltos agulha e bolsas do ex-marido. São amigas. O caso não teve novela, teve pragmática.

Se me permitem, os afortunados sofrem de uma insuficiência crônica. Quando olham para os menos abastados, enxergam neles apenas a falta de bens duráveis cultuados pela “classe média mediana”, como definia Leminski. Surtam, ignorando que quem mora nos cafundós e ganha pouco também pratica o “espírito humano”, do alto de seus sapatos tortos.

Não há maledicente, blasfemo, insatisfeito e ingrato nesse mundo que não daria um dedo para ter dez minutos de tamanha generosidade

Dona Aderrozária Batista Dias Rocha, 60 anos, é o caso. Mineira de nascimento, foi inquilina das lavouras de café paranaenses na infância. Jovem, migrou para as terras férteis do Mato Grosso, estado que adotou há 40 anos. Vive na minúscula Carlinda, 10.990 habitantes. Ou pelo menos mora lá parte do tempo, cercada de uma dezena de netos, ao lado do marido Pedro da Rocha, com quem chega a falar por telefone três vezes por dia. Quando o aparelho trepida, ambos se divertem com a musiquinha que ela escolheu para a chamada: “Um metro e sessenta de pura sedução...”, da dupla Bruninho e Davi. Pedro está em Carlinda; Aderrozária, em Curitiba, a 2.454 quilômetros.

À primeira vista, ela se resume a protagonista de uma história de superação. Vó heroína, ela viaja à capital do Paraná para acompanhar o neto Adaílton Rocha de Oliveira, 16 anos. O guri anda às voltas com os serviços hospitalares desde que tinha três dias de nascido. Não tem um rim; o outro está atrofiado. Sua última maratona de tratamentos no Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, durou nada menos que dois anos e quatro meses – sempre amparado por essa criatura de 1,60 metros de pura disposição.

Há coisa de um mês, quando avó e neto ganharam alta e arrumaram as malas para voltar ao Mato Grosso, o pessoal que mora na casa de apoio do Hospital Pequeno Príncipe armou uma festa surpresa. Foram muitos votos de melhoras para Adaílton, abraços emocionados em Aderrozária. Por mais de 700 dias ela passou café da manhã para os parentes de crianças internadas, que ali pernoitam, e amam essa senhorinha em contínuo estado de quermesse. Não há maledicente, blasfemo, insatisfeito e ingrato nesse mundo que não daria um dedo para ter dez minutos de tamanha generosidade.

Mesmo assim, se me permitem, é um pecado reduzir dona Adê a suas virtudes heroicas, a seus doces modos brejeiros. Ela fala da dureza que é passar tanto tempo longe de casa. Do neto. Conta que chorou no corredor, longe dos olhos de pena. Mas evita publicidade. Qualquer pessoa faria o mesmo. No mais, bom mesmo foi o que aprendeu ao longo desses exílios em Curitiba. “Eu nem lembrava mais que era tão interessada”, gargalha, fazendo por merecer uma linha que seja no belíssimo Uma história natural da curiosidade, livro espetacular do argentino Alberto Manguel.

Como tem de levar Adaílton para cima e para baixo, Aderrozária, brasileira de poucas letras, voltou a estudar. Precisava conseguir ler o que está escrito no letreiro dos ônibus. Hoje, chega ao aeroporto sem cutucar o ombro de ninguém em busca de informações. Daí para outras palavras, foi um pulo. De todas, a que mais gosta é “transporte” – que repete com a boca em mel. O treino linguístico lhe rendeu boas surpresas. Meses atrás, prestou atenção numa das fachadas do hospital, na qual está escrito “Pequeno Príncipe”. Quis saber de quem se tratava o guri lourinho – seria de Araucária? – e encontrou uma alma disposta a lhe apresentar a cria mais famosa de Antoine Saint-Exupéry. “Agora quero ler o livro”, anuncia.

Se andar pela cidade lhe favoreceu dar adeus ao analfabetismo, a doença de Adaílton ajudou-a a desenvolver o dom da observação. “Sei tudo sobre rins”, avisa, a propósito da palavra que mais ouviu nos últimos 16 anos. Decodificou cada termo, que explica sem fricotes para os que batem à sua porta, em Carlinda. Os vizinhos a reconhecem e reivindicam que lhe seja dado o título de enfermeira oficial da paróquia. Seria um reconhecimento a tantos saberes acumulados, de como fazer um curativo à perícia necessária para passar o bisturi.

Mais? “Faço crochê”, emenda. Não esperem que diga “faço história”. Isso é para quem se leva a sério.

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