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 | Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Há duas semanas, o piso de madeira rangeu no Museu da Fotografia do Solar do Barão, Centro de Curitiba, como há muito não se via. Algo próximo de duas centenas de visitantes encolheram a barriga para passar e dar passagem no estreito corredor que conduz às salas de exposições. Tamanho o calor, o lugar mais disputado era o beiral das janelas, que permitiam visão panorâmica dos três espaços em que o fotógrafo Brunno Covello, 32 anos, instalou parte de sua superlativa produção sobre os haitianos – um acervo bruto de nada menos do que 19 mil negativos, batizada de Rekòmanse, palavra em créole que dispensa tradução. A mostra deu origem a um livro, com o mesmo título.

Teve quem desatou a chorar no ombro do jovem Covello (o Covello veterano é Júlio, seu pai, também fotógrafo) ao ver a imagem ampliada de um dos meninos que vivem numa comunidade de órfãos em Fort Jacques, uma muralha abandonada na montanha de Kenscoff, de onde se pode ver Porto Príncipe – ou o que restou dela depois do terremoto de 2010. Houve quem preferisse sentar no degrau para ouvir as kompas – ritmo caribenho na voz do crooner e galã Berthony Pierre, um dos haitianos convidados para a festa. Teve de tudo na abertura de Rekómanse, menos indiferença e bocejo.

O material fotográfico impressiona. É um marco. Faz de Brunno o profissional brasileiro que mais e melhor registrou os haitianos aqui desembarcados por força de ajuda humanitária. São favas contadas que no futuro ninguém conseguirá tratar da saga dos refugiados sem passar por pelo menos uma dessas imagens. A produção, contudo, extrapola as virtudes heroicas – e, permitam dizer, supera o pieguismo e o panfletarismo que tendem a grudar qual carrapicho na produção documental.

No futuro ninguém conseguirá tratar da saga dos refugiados sem passar por pelo menos uma dessas imagens

Brunno Covello conseguiu desviar de todas as cascas de banana típicas de um tema que parece condenado a emocionar, despertar sentimento de culpa e, por extensão, impotência e apatia. Os haitianos que retratou fazendo vodu, tomando ônibus tão coloridos que mais parecem importados de Assunção, no Paraguai, ou tomando banho de caneca numa das favelas que visitou não estão ali para provocar muxoxos de pena. Não estão reduzidos a vítimas, pobres, deserdados, mas ampliados ao status de pessoas a quem deveríamos conhecer. Num dos melhores momentos, homens, mulheres e crianças explodem de alegria num campo de futebol, debaixo de um céu de baunilha. Pode-se dizer tudo dessas pessoas, menos que são derrotadas.

“Trabalhei na intuição”, resume o fotógrafo, que a cada empreitada mais assume seu engajamento na causa dos refugiados. Reconhece que os quase quatro anos em que dedica parte do seu tempo – leia-se fins de semana – para acompanhar a comunidade haitiana de Curitiba afinaram seu olhar. No começo, os imigrantes eram personagens de matéria de jornal, cujo nome ele pedia para que soletrassem ao fim das sessões de fotos, sem mais. Não tardou, esses mesmos nomes se tornaram familiares. Foram decorados, as biografias registradas e o pacto de confiança estabelecido. Brunno passou a fotografar pessoas que conhecia de verdade, às quais acompanhou em casamentos na Igreja Menonita do Boqueirão, baladas na Sociedade 13 de Maio e na lida na Ceasa. Graças a esse esforço de estar junto, os haitianos que passam por suas lentes não cabem numa fórmula jornalística, ocupada em impressionar o máximo com o mínimo de informação.

No mês de setembro do ano passado, ao desembarcar no Haiti, em companhia do amigo Marthatias Barthelous – o haitiano que lhe serviu de guia –, a intimidade concorreu a favor de Brunno. Em vez de ligar o botão “ativista indignado” – em vias de ser arrastado pela terrível síndrome de Superman –, ele estava calibrado para enxergar o Haiti e os haitianos para além da linha traçada pelo senso comum. Estava ali para ter parte com um lugar e suas pessoas. Estava na terra de seus conhecidos. Admite que chegou a baixar a câmera diante de alguns cenários arrasados. Não que os achasse menos importantes – é homem de imprensa, afinal –, mas por temer que o espectador, condicionado, mais uma vez enxergasse a ilha caribenha como poeira, no máximo tendo a música de Caetano Veloso como trilha sonora. Queria que piscassem para ver melhor. Conseguiu.

Alterar o vértice do olhar é, com folga, a maior glória de Rekòmanse. Brunno tem suas artimanhas, é claro. A imagem do piá solitário de Fort Jacques nos imobiliza – como em geral acontece diante das coleções de um Sebastião Salgado, por exemplo –, mas está longe de ser a medida de todas as coisas. Ao lado da figura icônica do órfão de Porto Príncipe, outras três se impõem. Elas nos apresentam um Haiti em movimento. Numa dessas fotos, o mesmo menino sai nu, de um tanque de água, onde se refresca junto de outros espoliados. Estão vivinhos da silva, brincantes, dando o troco. Na sequência, mais meninos, jogando com uma bola murcha num campinho de terra aberto no meio de uma mata tão frondosa que, ali, bem poderia ser um pedacinho do Brasil. Fecham os dípticos um click do próprio Marthatias Barthelous a bordo de um barquinho caribenho, como se não houvesse amanhã. Mais do que um deserdado, o que se vê ali é um jovem livre, entregue ao mar.

Por essas e outras, importa dizer que Brunno Covello fez mais pelo Haiti se entregando ao cotidiano do país do que se tivesse se comportado como um estrangeiro, ocupado de salvar a pátria. Toda a naturalidade da mostra, que tem feito o público se atirar a ela com volúpia, teve de ser conquistada à custa de muitas estratégias. Antes de partir, o fotógrafo pediu a sete imigrantes radicados na capital que escrevessem cartas e mandassem fotos para seus parentes. Ele as entregaria em mãos. Esse roteiro foi seu passaporte para ingressar no dia a dia da gente de Gonaïves, Arcahaie e Carrefour, para citar alguns endereços, sem que fosse tomado como mais um “blanc” ocupado de fotografar e partir, repetindo a sina da “imagem roubada”.

O momento das cartas era para ser registrado – como parte do projeto –, mas logo na primeira porta em que bateu palmas Brunno Covello recuou, assim que percebeu que o papel de emissário era pessoal demais para ser estampado. O que aconteceu nos encontros ficou apenas nas entrelinhas. “A filha de Marie Viergelie Lucat (uma das sete) passava a mão na foto, como se acarinhasse o cabelo da mãe”, conta, fazendo das tripas para não ser nocauteado pela emoção.

O abismo que se forma entre pais embarcados e filhos pequenos – uns à espera dos outros, tendo mais de 4 mil quilômetros de terras e oceanos a lhes separar – é uma das faces mais cruéis da diáspora haitiana. É onipresente a sensação de que se trata de uma nação arrasada não por surtos de cólera, terremotos e furacões, mas pela melancolia dos corpos separados.

Quanto a eles, insistem. Como conseguem – não se sabe. A maior prova de que Rekòmanse nasceu deus reside na maneira como cultua o mistério dos exilados. Esse trabalho é cheio de cor, dança, assimetria, mas também cheio de silêncios. Em caso de dúvida, uma sugestão: debruce-se sobre as janelas do Solar do Barão que permitem contemplar as fotos de Covello. Dali dá para ver paisagens onde a terra treme, mas também gira.

  • Brunno Covello na sala de retratos, um dos três capítulos de sua exposição no Solar do Barão. Mostra deu origem ao livro Rekòmense - recomeço em créole.
  • Fotógrafo levou cartas de sete haitianos que vivem em Curitiba para seus familiares, no Haiti. Retratos dos seus sete personagens estão na mostra curitibana.
  • Ritual de entrega das cartas não foi registrado, por respeito à intimidade do momento. Nas demais etapas, Brunno retratou o cotidiano, o movimento a cor e o mistério da ilha caribenha.
  • Empenho do fotógrafo foi evitar, nas fotos feitas no Haiti, legitimar o olhar unilateral sobre o país. Há um Haiti não visitado em cada imagem.
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